Uma vez mais o liberalismo
O liberalismo sem democracia é um pesadelo para os mais fracos e para os menos capazes, porque, o direito à propriedade e à livre expansão individual acaba por esmagar e roubar direitos.
Para se compreender o que acabo de afirmar basta pensar na independência dos Estado Unidos, na Constituição inicial, e ver que nem os negros nem as mulheres nem aqueles que não pagavam impostos tinham direitos. Foram as sucessivas conquistas democráticas que atenuaram a brutalidade do liberalismo. Até em Portugal, o direito de voto das mulheres foi negado e, na 1.ª República, que era liberal, os analfabetos e quem não pagasse certo valor de impostos não tinham direito a escolher os seus representantes. No liberalismo impera o indivíduo que tem possibilidades financeiras e propriedade.
Quando a democracia se impôs ao liberalismo o Estado passou a ser a figura reguladora da excessiva liberdade liberal.
Expostas estas ideias básicas, repetindo em parte o que em tempos já disse, olhemos para o nosso país e para a impossibilidade de se ter um sistema político liberal puro ou um sistema social-democrata semelhante aos existentes e resistentes na Europa.
Em Portugal imperou, pelo menos desde o século XVI o individualismo, a vaidade balofa, a inveja mesquinha, a arrogância sem fundamento e outros defeitos menores que o Tribunal do Santo Ofício se encarregou de cultivar através da manutenção da denúncia anónima (para confirmar basta consultar, na obra “Portugal Quinhentista” da autoria de A. H. de Oliveira Marques, o capítulo relativo ao retrato do nosso povo).
O português é invejoso e faz jus ao provérbio popular «Nunca o invejoso medrou nem quem ao pé dele morou». Demonstração do adágio? Basta ler Camilo Castelo Branco ou Eça de Queirós ou qualquer autor do século XIX que dedique algumas linhas ao comportamento dos chamados “Brasileiros de torna viagem” e à vaidade que tinham em esmagar, nas suas aldeias e vilas de origem, o maioral, a quem guardavam rancor desde quando embarcaram para a América do Sul; construíam uma casa maior e mais moderna do que a dele e arrebanhavam terras em maior quantidade do que as do proprietário mais rico da aldeia ou vila. Pura vingança, pura mesquinhez, pura vaidade. Não aplicavam as avultadas poupanças em indústria que as reproduzisse; importava-lhes a opinião alheia mais do que o espavento. Morriam, e rapidamente se desfazia a fortuna nas partilhas; ficava a casa que, muitas vezes, se degradava por falta de uso e abandono.
Daqui se conclui que, no geral, o português endinheirado apreciava mais possuir terra de lavoura do que buscar outros processos de ampliar o seu rendimento, nomeadamente, aplicando o pecúlio, ganho como “escravo” no Brasil, em indústrias que modernizassem Portugal. Ao contrário dos ousados pequenos capitalistas do Reino Unido, que ambicionavam construir fábricas, os nossos queriam ser donos de terras.
O século XIX, aquele onde se deu o grande salto para a industrialização na Europa e nos EUA, foi perdido em Portugal por causa da mesquinhez e da falta de visão: escolheu-se a agricultura tradicional ao invés de encontrar o nicho ou os nichos de produção que mais nos fossem rentáveis para nos colocarem ao lado da Europa. A paupérrima Suíça escolheu os relógios e as lentes enquanto a imponente Áustria continuava presa à tradição do império e se desvaneceu um século depois.
Em Portugal não havia capitalistas; havia agricultores absentistas que em Lisboa e no estrangeiro esbanjavam o suor do assalariado agrícola. E o único que ousou rebentar com a tradição, construiu um “império”: Alfredo da Silva. E vem este nome à colação para recordar que, na Europa e nas Américas, o capitalismo era nacionalista: o dinheiro aplicava-se no país de origem do seu dono. Foi esta a mola real para a definição da riqueza das nações. Foi este o princípio do liberalismo de um século e meio: o XIX e a primeira metade do seguinte. E foi esta a razão da pobreza nacional, que só no final da 2.ª Guerra Mundial buscou industrializar-se, a medo, para manter segura a ditadura retrógrada de um Oliveira Salazar, que aliava em si os dois fundamentos da cultura económica nacional: a educação clerical e a origem rural, bem rural de uma Beira onde ainda se mantinham os senhores da terra e os rendeiros que lhas arrendavam para melhor sustentar a família. Chegámos, com cento e cinquenta anos de atraso à fonte da riqueza dos povos. Quando chegámos já se praticava deslocalização das indústrias para melhor servirem os accionistas (veja-se “The New Industrial Estate” de John K. Galbraith). Daí à globalização foi menos de cinquenta anos.
Portugal é um país pobre e, hoje em dia, economicamente, quase monocultural (turismo e outros tipos de serviços), porque não avançou ousadamente para a industrialização e, ao mesmo tempo, para o liberalismo próprio do século XIX. Fontes Pereira de Melo, com a sua política de abertura de estradas e caminhos-de-ferro, viu mal o problema, porque o viu às avessas: havia que incentivar as indústrias para estas “exigirem” as estradas e os caminhos-de-ferro. O mesmo erro foi cometido por Cavaco Silva, no século XX, que abriu autoestradas em vez de preferir a ferrovia… São autoestradas que, do ponto de vista económico, vão para nenhures.
Creio que lendo atentamente os parágrafos anteriores se percebe que o liberalismo não existiu em Portugal, a não ser para derrubar a Monarquia absoluta, porque se privilegiou a democracia individualista e a tradição agrária e cultural.