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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

27.07.22

Uma vaga estratégia europeia


Luís Alves de Fraga

 

É natural que a grande maioria dos meus leitores não saiba ou já não se lembre de ver, no tempo do Estado Novo, navios mercantes fundeados no meio do Tejo, ali na zona vulgarmente conhecida por Mar da Palha ou talvez um pouco mais para Norte, exibindo a bandeira vermelha com a foice e o martelo, da URSS. Vinham carregar cortiça e descarregar trigo ou outros cereais. O transbordo fazia-se em grandes barcaças puxadas por rebocadores ou, muito antes, em fragatas do Tejo, à vela, navegadas por marinheiros de água doce, que conheciam como ninguém todas as manhas do estuário deste rio tão lindo, que desagua em mar português.

A prosa pode aparecer com laivos poéticos, mas é verdadeira porque, nestas coisas de comércio não há ideologias políticas; há interesses económicos e os soviéticos pagavam bem a nossa cortiça. Não podiam era atracar ao cais nem a tripulação vir a terra. Por cá não havia embaixada nem embaixador soviéticos, nem passaportes nem vistos de estadia, mas sobrava a cortiça e faltavam cereais.

 

Creio que não está estudada a história deste comércio, mas, como contemporâneo, julgo poder deduzir, como hipótese de trabalho, o seguinte: Salazar, odiando a ideologia comunista, preferia fazer comércio dentro da Europa a ter de o estabelecer com certos países do continente americano, nomeadamente os EUA, em quem não confiava, nem considerava como potência com peso diplomático no mundo. Para ele, entre a, muitas vezes, traiçoeira Grã-Bretanha e os americanos preferia a primeira aos segundos, que achava incapazes de respeitarem a cultura e os costumes europeus, porque eram broncos e crianças crescidas. A cedência da base aérea na ilha Terceira foi feita a título gratuito durante as primeiras dezenas de anos, não por abundância de meios financeiros, mas por orgulho, soberba política e, até, desprezo.

Salazar foi dos últimos políticos europeus a render-se aos encantos americanos. Talvez, sem o saber dizer deste modo, o ditador tinha uma estratégia nas relações com a grande potência militar do ocidente. E não foi por acaso que assim procedeu; ele desconfiava da posição americana quanto à descolonização e sabia que podia contar, pelo menos, com a neutralidade do Reino Unido nesse assunto. No fundo, ele descobriu a ambição global de Washington e não pactuou com ela, de tal modo que, em 1961, Kennedy condenou a política ultramarina portuguesa e acabou por decretar o bloqueio de fornecimento de material de guerra a Portugal.

Salazar sabia que, se de um lado chovia, do outro trovejava! Deste modo, manteve uma política de frieza com os americanos e uma política glacial com os russos.

E tanto assim foi que o primeiro Presidente dos Estados Unidos a visitar Portugal foi o general Eisenhower, em Maio de 1960, mas, note-se, Salazar teve o cuidado de convidar alguns anos antes, Isabel II (1957) para visitar o nosso país, convite que a soberana, com a idade de 30 anos, satisfez, depois de o seu antecessor Eduardo VII, em 1903, ter sido o primeiro monarca britânico a visitar-nos.

 

Tudo isto se passou quando o governo de Portugal, sozinho, tinha de, e podia, traçar estratégias políticas e diplomáticas de relacionamento com outras potências ‒ grandes ou pequenas ‒, obrigando a que, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, se usasse a cabeça para pensar e a que o primeiro-ministro (ou equivalente no cargo) escolhesse prioridades para salvaguardar interesses nacionais (ainda que esses interesses pudessem beneficiar só uma parte da população). Foi isso que levou a que, durante a vigência do regime fascista, o Estado fosse comprando para si as acções das companhias estrangeiras que dominavam sectores estratégicos da nossa economia. Foi a nacionalização de grandes empresas que, muitos anos mais tarde, já no âmbito do mandato da liberal União Europeia, possibilitou que se vendessem, de novo, ao estrangeiro para satisfazer as estratégias económicas desse grande espaço ao qual Portugal ficou sujeito.

Perdemos identidade, soberania, independência e capacidade de definir estratégias nacionais. A imensa Grã-Bretanha saiu da UE, exactamente por ter sentido o peso dessa grilheta.

 

E tudo isto vem a propósito da posição que a República Federal da Alemanha (RFA), ainda em tempo da URSS, ter estabelecido com Moscovo, em 1970, através da Política de Abertura, Willy Brandt, um tratado comercial que optou por usar o gás soviético para pôr a sua indústria a funcionar. Já antes, em 1960, o chanceler Adenauer, havia iniciado o comércio com a URSS, embora com críticas do mesmo Kennedy de quem Salazar desconfiava.

Ora, temos de ter em conta que, quer em 1960 quer dez anos depois, já existia o Mercado Comum e que a abertura alemã a Leste estava, não só a marcar uma posição estratégica para a recuperação económica da RFA, como a delinear uma estratégia para a CEE, que passava por cima de desentendimentos políticos para procurar, através do comércio, entendimentos vários. Havia, nesta época, uma clara separação entre o que era a OTAN ‒ aliança contra a expansão territorial da URSS, com a admissão do controlo de Moscovo sobre os Estados seus satélites, embora causando sempre espanto e revolta quando o Kremlin impunha a política dos carros de combate nas zonas que pretendiam fugir ao alinhamento comunista ‒ e o que era o interesse político e económico da Europa.

Mas, com a queda do Bloco de Leste, como repetidamente tenho dito, não só não se pôs fim à OTAN como se transformou esta organização em instrumento da estratégia global dos EUA, levando a que a União Europeia se deixasse enredar pela política da Casa Branca, perdendo Bruxelas uma óptima oportunidade para, num mundo que já não era bipolar mas multipolar, marcar a sua posição estratégica, envolvendo, também, a componente militar. A Alemanha estava em condições de providenciar a venda de armamento pesado aos seus parceiros da União, tal como a França em garantir o escudo nuclear, que Berlim não possuía.

A Europa, muito mais preocupada na actividade mercantil e subordinada à utopia originária da CEE ‒ o entendimento comercial põe fim às guerras (verdade para a Europa, mas mero sonho para quem aspira ao domínio global) ‒ aceitou estender a influência da OTAN para além dos seus limites fundadores, já que, ao abrigo do Art.º 5.º se sentia protegida, e acabou subordinada à política de Washington. E aqui estamos nós, europeus, a impor sanções económicas à Rússia e a perder a capacidade da Alemanha, motor da economia da União, seguindo caninamente a vontade que vem do lado de lá do Atlântico. Este é o pecado dos tecnocratas de Bruxelas que, deixando de ser políticos passaram a ser gestores de espaços económicos e financeiros.

Vamos pagar muito caro e aventura russo-ucraniana, que deveria ter sido circunscrita àqueles dois países, já que Moscovo não se atreve a atacar nenhum dos Estados da OTAN, por causa da cláusula determinada pelo Art.º 5.º. Estão a tentar convencer-nos do contrário e nós nem damos por isso.