Uma luta de culturas
Vários motivos têm-me levado a manter silêncio, nos últimos tempos, sobre as situações de guerra que mais evidentes se tornaram no nosso planeta e, também, sobre os problemas domésticos do nosso país. Não vou, agora, entrar na explicação da guerra que se desenrola entre Israel e o Hamas com sacrifício de muitas vidas humanas. Os nossos vários comentadores televisivos encarregaram-se de dizer “tudo” (julgam eles) sobre as razões do conflito e já prognosticaram “todas” as soluções que lhe vão pôr fim. O que poderia eu adiantar sobre tamanha confusão estratégica e política? Nada!
Contudo, arrisco avançar com uma visão que, parece-me, é original, embora esteja à vista de toda a gente com um mínimo de conhecimentos históricos.
Flávio Josefo (37 a 100 dC) escreveu uma obra célebre intitulada “A Guerra Judaica”, por ter sido testemunha dos factos, à semelhança de Tucídides aquando da “Guerra do Peloponeso”, deixando-nos a certeza de que os romanos tentaram subjugar os judeus que, embora divididos, ofereciam resistência à ocupação.
Foi com a presença das legiões de Roma que se iniciou a grande diáspora judaica, com cerca de mais de mil anos quando a ONU tomou a decisão de criar um Estado judaico na Palestina! Imaginemos que a ONU era dominada por islâmicos, reivindicando o direito a ocupar o reino de Granada, que existiu desde o ano de 718 até 1492; o que seria agora dos espanhóis ali residentes? Pois bem, não nos percamos nestas divagações e tomemos o rumo do essencial.
Os judeus, na diáspora mantinham a sua religião monoteísta e uma compilação escrita da sua história, aquela que conta como Deus criou a Terra, o Homem e tudo o mais que a Natureza pode oferecer. O tempo de permanência nas novas residências foi identificando-os, excluindo a prática religiosa, com as pátrias adoptivas. Tornaram-se russos, polacos, espanhóis, holandeses, portugueses, franceses, ingleses, alemães, italianos e por aí fora nos outros continentes. Todos nós sabemos isto, mas, talvez não saibamos que o monoteísmo judaico impõe a não representação de Deus. Cabe perguntar: porquê? A resposta é singular: porque na chamada Antiguidade Clássica ‒ a História dos povos mediterrâneos muitos milhares de anos antes de Jesus nascer ‒ nas guerras entre tribos a condição de derrota passava pela destruição dos templos e dos ídolos que neles estavam e, sem eles, os vencidos tinham de adorar os dos vencedores, passando à condição de escravos. Um deus sem representação física só tem um templo onde habita: o corpo daquele que o diviniza. Eis a explicação para o extermínio dos judeus desde sempre.
É oportuno agora trazer para esta explanação o cristianismo o qual mais não é do que uma “heresia” do judaísmo pois, com efeito, nasceu de um judeu, Jesus, a quem chamaram o Cristo (Messias) e que, dizia, vinha pôr fim ao pecado original, o mesmo é dizer, tinha por finalidade desfazer os alicerces do Velho Testamento e das obrigações, maldições e castigos impostos por Deus ao Homem devido a ter-lhe desobedecido. No fundo, dizendo-se filho de Deus, punha em causa as decisões mais elementares de seu pai. E os apóstolos, como bons fiéis da nova heresia, espalharam-na pela Europa e Norte de África, chegando à Índia. Mas, nesta acção prosélita, tiveram de enfrentar povos pagãos e, para garantir a conversão, cederam num dos princípios básicos do monoteísmo judaico: a representação de Jesus e, depois, de toda a plêiada de santos, bem como as inúmeras invocações da mãe de Jesus. O cristianismo foi um compromisso entre o monoteísmo judaico e o paganismo. Contudo marcou indelevelmente o começo de uma nova era, levando à criação de um calendário quase universal.
No ano de 610 Maomé, um humilde comerciante da Arábia, ouviu o arcanjo Gabriel que lhe foi passando a palavra de Deus (Alá) a qual veio a ser compilada no Corão, livro sagrado dos islâmicos. Maomé foi, na tradição muçulmana, mais um profeta, na qual está também, com igual categoria, incluído Jesus.
A extraordinária diferença entre esta nova religião e as anteriores das quais deriva é que o Corão integra em si mesmo não só preceitos religiosos como sociais e políticos, que devem ser seguidos à risca e sem desvios. Também o Corão proíbe a representação da figura humana e vai mais além, pois não aceita a representação de Alá.
Independentemente de se ter dividido em duas principais correntes ‒ xiitas e sunitas ‒ não se perderam as orientações impostas pelo Corão. Assim, a autoridade religiosa é a autoridade política e social.
Ao analisar as três religiões percebemos que todas derivam da judaica e que todas têm razões para se combaterem: os cristãos condenam os judeus por terem matado o filho de Deus; os islâmicos, porque o profeta impôs a obrigação de estender a sua palavra a toda a humanidade; os judeus, porque a Terra Prometida lhes foi roubada e, agora, a desejam ampliar até aos limites de há milénios.
Ora, olhando todos os conflitos entre cristãos, judeus e islâmicos, percebemos, de imediato, que, afinal, na base estão diferenças culturais incompatíveis, que basta serem exploradas por extremistas ditos religiosos, mas cujas finalidades podem ser diferentes das crenças num deus, para arrastarem atrás de si multidões exaltadas pelo apelo ao serviço teológico.
Enquanto estas culturas não forem capazes de perceber o que as une e expurgarem o que as separa jamais haverá paz no Médio Oriente e no mundo.