Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

15.03.20

Uma crítica


Luís Alves de Fraga

 

Em tempo de prevenção em casa por causa do vírus, para distracção, vejo velhos filmes clássicos, já esquecidos. Ontem à noite foi a vez de Um Eléctrico Chamado Desejo, realizado por Elia Kazan a partir da peça, com o mesmo nome, de Tennessee Williams, escrita em 1947.

 

Vi a fita no seu original de 1951 ‒ creio que não houve nenhuma outra versão ‒ e, retirando-lhe a forma de representar própria da época resultante do estilo de escrita de Tennessee, deixando de lado as críticas feitas então ou mais tarde, tentei percebê-la à luz do tempo em que foi concebida. Não sei em que medida tal me é permitido, já que não sou nem um perito na obra do autor, nem crítico teatral ou cinematográfico. Limito-me a tentar entrar na ambiência do final dos anos de 40 do século passado, nos EUA, e retirar desse mergulho algumas conclusões, que poderão ter condicionado, o subconsciente de Tennessee Williams.

 

Blanche Du Bois, figura principal do filme/peça, pode ter sido inspirada, como a crítica refere, pela problemática da irmã de Tennessee, mas, indo mais além, é a metáfora de uma certa América Sulista em rápida queda financeira, dotada de uma cultura raffinée, muito distante do vulgar plebeísmo americano e, em especial, do dos da segunda geração de imigrantes. É o choque de dois tempos e, em particular, é o choque entre a cultura da velha mansão familiar nas plantações do Sul, com fortíssima influência francesa, visível no vestir, no porte e na educação social (termos como cavalheiros e expressões como escusam de se levantar são a mostra disso mesmo) e a miséria de um proletariado branco a viver em partes de antigas e elegantes casas de uma Nova Orleãs colonial. Williams e Kazan, sem terem de o expressar em diálogos, evidenciam esse choque em cenários e comportamentos que não escapam à observação do espectador. É a doçura afectada de Blanche, resguardada por um guarda-roupa decadente e jóias falsas, a esconder a miséria moral a que é obrigada, confrontada com a realidade crua de gente para quem o álcool é uma forma de entorpecer os sentidos e o jogo de póquer é a distracção máxima, quando não explode em rixas violentas, sem consequências sobre uma amizade construída na guerra, na fábrica e na pobreza. São, de realmente, duas Américas em choque.

 

Tennessee, provavelmente, apanhou ‒ porque faz algumas referências à Divisão de engenharia onde os homens combateram durante a recém acabada guerra ‒ a violência do stress pós-traumático trazida pelos antigos militares para o trabalho, para as ruas, para as salas de bowling e, mais do que tudo, para casa. Uma violência que leva a extremos a fúria da vida, uma violência que se compraz na destruição, uma violência que se descarrega nas companheiras, dóceis e compreensivas, que voltam sempre e sempre para casa, para a cama onde se reconverte a dureza em amor dorido.

 

Tennessee Williams, na minha opinião, foi mais longe do que os críticos da época viram, porque a leitura de hoje tem de ser feita à luz da História, à luz da Sociologia, para se compreender os diferentes dramas transversais a uma sociedade em decadência e em ressurgimento; decadência quando olhada com os óculos da oposição Norte-Sul, ricos em pobreza e pobres em pobreza; olhada com as lentes de uma sociedade a festejar a vida depois de uma guerra, que matou; vista com os olhos da compreensão de quem quer sobreviver e viver a mudança. O ressurgimento aparece, metaforicamente, representado na irmã de Blanche capaz de dar à luz um filho para ser criado na miséria de tudo e, também, no desfecho traduzido no acto de mandar recolher ao auspício para loucos uma Blanche perdida para essa transformação social.

 

Enfim, creio, um filme a ser revisto ou visto com a paciência de quem vai gozar não uma peça de teatro mudada para cinema mas um pedaço da História que viveu e não se lembra ou nunca viveu e quer perceber.