Tempo que passou
O meu pai adormecia, à noite, na cama, sempre com um livro aberto nas mãos. Escorregava para o chão ou ficava-lhe sobre o peito.
Esta é a mais remota lembrança guardada por mim quando ainda mal falava. Lá em casa, o grande leitor era o meu pai: à tarde trazia sempre na mão o já esquecido vespertino “Diário de Lisboa”, creio, semanalmente, via-lhe o periódico humorístico “Sempre Fixe”, quinzenalmente, se a memória não me atraiçoa, comprava e devorava, ainda em formato tablóide, “A Vida Mundial” e, mensalmente, adquiria as “Selecções da Reader’s Digest” edição brasileira. Era um homem informado e dado ao conhecimento humanístico. Com ele aprendi que se pode viajar por todo o lado através das páginas de um livro, um jornal e uma revista, com ele aprendi o gosto da leitura.
Mas o meu pai, que antes de ser enfermeiro da nossa Armada, havia sido repórter de um jornal também desaparecido – “Novidades”, – tinha o prazer da escrita e o gosto pela informação. De origem católica, quando nasci, não o tive como exemplo da prática religiosa; tive-o como dado à escrita. Voltou a colaborar com jornais regionais – açorianos e continentais – nas vésperas da passagem dos cinquenta para os sessenta anos. E foi nessa altura, seguindo o seu exemplo, que me iniciei, também, a escrever as primeiras crónicas.
Logo na minha estreia ensaística fui vítima do lápis azul da censura; foi no ano de 1968. Já conhecia o medo social e individual da acção da polícia política; passei a conhecer a repressão sobre a expressão livre do pensamento quando escrito.
Até 1974, Abril, desafiei de todas as formas possíveis a censura; aprendi a escrever de maneira a que a minha mensagem passasse nas malhas da ignorância ou da pressa dos censores. Era uma técnica deixada hoje de praticar, contudo, era uma forma de castrar o pensamento, pois levava-nos aos caminhos ínvios do dizer, à falta de frontalidade, ao cinismo, à astúcia.
Poderia deixar de escrever, mas quem escreve sem ser por profissão, em órgãos de comunicação social, fá-lo em resultado de uma compulsão interior, por desejo de abrir perspectivas sobre o que sabe ou sobre o modo como interpreta o que vê e sabe! Nunca desisti. Lá pelos anos 70 do século passado, presumi – e, parece-me, bem – que estava sob o olhar atento da PIDE/DGS; dos serviços de informação militar devo também ter estado, não por constituir um perigo, mas, por não representar um servilismo acéfalo.
O 25 de Abril, para mim, não foi só o começo da democracia, da liberdade, representou a possibilidade de dar largas à minha ânsia de dizer o que penso e como penso. Foi o verdadeiro salto, entre a opressão vivida e sentida, para a descompressão responsável da emancipação.
Neste tempo que passou, independentemente de diferenças políticas, de simpatias partidárias, o mais marcante para mim, o mais satisfatório, o mais precioso, foi a liberdade de expressão do pensamento, porque me permitiu exercer o magistério em sala de aulas e, de certa forma, um pouco em todo o lado onde deixei as minhas palavras escritas ou faladas.
Todos os dias, quando digo o que penso, sem restrições para além das que me imponho, celebro o 25 de Abril de 1974, que vivi em Moçambique e para o qual, em pequena quota-parte, contribui. Hoje, especialmente hoje, recordo a alegria e as expectativas sentidas nessa alvorada redentora.
Abril cumpre-se sempre que a luta pela justiça social, económica e cívica se desenrola perante os olhos de todos nós através da liberdade de dizer.