Técnica e Disciplina Militar
Já vai longe o tempo em que as armas militares tinham uma tecnologia muito simples. Com a modernidade a caldeira a vapor deu lugar a sofisticados motores e, embora a espingarda continue a ser só carregar e disparar (mesmo assim, ensinava-se aos recrutas, ao desmontar e montar a arma, que “o material tinha sempre razão”) ganhou, também, melhores aperfeiçoamentos e ligeiras sofisticações.
Sem querer menosprezar os outros ramos das Forças Armadas (FFAA) aquele onde a tecnologia evoluiu mais rapidamente foi na Aviação (entre nós, Força Aérea). Essa evolução foi tão grande e tão rápida que, sem darmos por isso, trouxe alterações profundas ao Regulamento de Disciplina Militar (RDM). Vamos ver alguns exemplos simples.
Numa aeronave de duplo comando quem manda a bordo é o comandante da mesma, ou seja, aquele que, tecnicamente, está habilitado para tomar todas as decisões. Ora, isto inverte a hierarquia militar, porque sendo o mais qualificado, nada obriga a que seja o mais graduado. Assim, o comandante pode ser um tenente e o copiloto um coronel e, dentro da aeronave, quem dita todas as ordens é o primeiro e não o segundo. Se o sargento mecânico avisar o comandante de bordo que há a probabilidade de existir uma avaria técnica em algum dos componentes da aeronave este vai verificar e pode decidir abortar a missão por causa da informação recebida. Se o graduado técnico informar o comandante de bordo de que a carga (por exemplo num C-130) está mal estivada ou excede o peso previsto, o comandante pode dar ordem para abortar a missão até que tudo esteja corrigido. Assim, percebe-se que a segurança de pessoas e material prevalece sobre o cumprimento da missão. De nada interessa correr riscos se a missão estiver, à partida, comprometida.
Como se percebe há aqui duas dimensões de disciplina: a técnica e a castrense e elas não interferem nem chocam uma com a outra. Se algum choque pode existir é por ter havido falta de informação técnica a qual haja levado a qualquer percalço na navegação da aeronave.
Quando, recorrendo ao exemplo inicial do tenente e do coronel, durante o voo, este último quer fazer valer a sua maior graduação compete ao comandante da aeronave “fazer ouvidos de mercador” e mal vai o coronel se, chegados ao solo, exercer represálias sobre o tenente, pois isso falará sobre a natureza do seu carácter.
Até nas aeronaves monolugares e de comando único, voando em formação, a decisão de um piloto abortar o cumprimento da sua missão tem de ser respeitada.
Recordo o caso de um tenente ou capitão que, aos comandos de um Fiat G-91, em Moçambique, voando em parelha com o general-comande da Região Aérea, para cumprimento de uma missão de combate, porque, ao descolar, começou a sentir, cada vez mais, calor intenso no habitáculo, concluiu que teria fogo a bordo. Informou o comandante da formação ou seja, neste caso, o general, e regressou à base absolutamente esbaforido com receio de morrer assado. O general abortou completamente o ataque que iam fazer e acompanhou-o até à pista. Uma vez no solo, o tenente ou capitão saltou do seu lugar e, não se vendo fogo em lado nenhum, o mecânico de bordo foi passar revista ao habitáculo e deparou com o botão do ar condicionado virado para a posição de aquecer. Estava explicado “o fogo a bordo”.
O general, conhecido pelos seus acessos de cólera, agora na função de comandante da Região Aérea, disse para o tenente ou capitão: «Nunca mais vais pilotar aviões de reacção. Passas imediatamente para os aviões de transporte». E assim foi! Um erro técnico secundaríssimo mudou completamente a vida desse oficial.
Talvez, fruto desta cultura onde prevalece a técnica sobre a cega disciplina militar, eu dê valor superior ao que os técnicos dizem do que ao cumprimento de uma disciplina em que a vida humana ainda é bastante desprezada ao mesmo tempo que se fazem correr riscos ao material que custa fortunas.
Afinal, o Regulamento de Disciplina Militar pode ser olhado, compreendido e executado de maneiras muito diferentes.