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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

02.09.22

Quando se tem medo da História


Luís Alves de Fraga

 

Nestes últimos três dias as opiniões dividiram-se, pode dizer-se, no mundo inteiro, por causa da morte de Gorbachev. Uns, vêem nele o político que acabou com o sonho soviético, com o comunismo e com a solução dos problemas da humanidade; outros, vêem-no como o homem que foi capaz de tentar a abertura do sistema ditatorial soviético na busca de uma social-democracia muito mais viável do que o modelo marxista-leninista, pondo fim à Guerra Fria e às tensões Leste-Oeste.

As condenações são fáceis quando se descontextualizam os factos determinantes das atitudes dos executantes da política. E tais condenações são desonestas. Há, pois, que olhar para a situação da URSS, quando Gorbachev ficou à frente dos destinos desse sonho leninista.

 

A corrida aos armamentos, na escalada do terror, imposta pelos EUA à URSS e a que esta não se eximiu, sempre para garantir a supremacia (pelo menos, teórica) perante a potência comunista e que tomou o nome de Guerra Fria, obrigou Moscovo a ter de gerir duas economias diferentes: uma, interna, e, outra, externa. Ou seja, dentro das fronteiras praticava-se a economia planificada, que procurava, em etapas sucessivas, quinquenais, cumprir o preceito marxista a cada um segundo o seu trabalho e a cada um segundo as suas necessidades; mas, na concorrência belicista com os EUA, praticava-se ‒ porque tinha de ser para dar a resposta apropriada ‒ a economia capitalista, para se compatibilizar com as posições estratégicas da NATO e, em especial, com as dos EUA.

Para se perceber esta segunda faceta da economia da URSS, basta pensar em todo o apoio em armamento que Moscovo dispensava aos movimentos insurgentes no mundo inteiro, que se opunham a constituir-se numa sociedade capitalista ou a ficarem na órbita da dependência do capitalismo americano ou mesmo europeu. As obrigações da política externa cada vez mais solapavam a execução de um planeamento económico interno que, efectivamente, servisse ao desenvolvimento dos povos soviéticos.

Este desencontro não era só uma consequência da competição estratégica com os EUA. Se o disséssemos estávamos a mentir por omissão. Ele resultava da existência da Internacional Comunista onde se filiavam todos os partidos marxistas-leninistas do mundo ocidental, gerando no Kremlin a obrigação de apoiar a revolução socialista onde ela se manifestasse. Claro que, ao mesmo tempo, era uma forma de, por via indirecta, se ingerir nos assuntos internos desses mesmos países. Álvaro Cunhal e o PCP recebiam apoios de Moscovo ao mesmo tempo que tinham de cumprir obrigações. E isto era verdade para todos os partidos comunistas! E não foi por causa da derrota do PCP, no dia 25 de Novembro de 1975, que em Portugal não se estabeleceu um regime comunista; foi porque Moscovo e o PCUS não autorizaram e, até, desincentivaram a revolução socialista. No Kremlin não se queria uma Cuba na Europa, pois daria oportunidade à vacinação tão desejada por Kissinger, semelhante à que acontecera no Chile para fazer abortar todos os movimentos comunistas na América do Sul. A decisão de Moscovo foi uma questão estratégica para gerir oportunidades.

 

Ora, como já disse, todos os empenhamentos da URSS fora das suas fronteiras, levavam a que se tivessem de reduzir os recursos financeiros para, internamente, satisfazer as necessidades dos povos soviéticos. A economia interna foi definhando à medida em que os envolvimentos externos se tornavam mais prementes.

Quando, no início dos anos de 1980, nos EUA, se anunciou para breve a construção de um sistema defensivo estratosférico capaz de interceptar qualquer ataque partido de qualquer ponto do globo, Moscovo perdeu a corrida, pois, dentro das suas fronteiras e nas principais cidades, os supermercados apresentavam prateleiras vazias de tudo. A população urbana estava revoltada e comerciava no mercado negro com todos os turistas a quem cedia o que podia a troco de, por exemplo, umas calças de ganga ou quaisquer outros artigos de uso corrente e vulgar no mundo ocidental.

 

Gorbachev, quando Presidente da URSS, teve pela frente, para resolver, este intrincado panorama interno e externo. O Afeganistão corroía-lhe as forças militares, como antes havia corroído as dos britânicos e, depois, corroeu a dos americanos; o desequilíbrio estratégico com os EUA estava à vista e a curto prazo poderia representar um enfrentamento directo clássico em qualquer teatro operacional do mundo; o aparelho militar soviético não tinha condições para se modernizar; a fome e a insatisfação imperavam dentro das fronteiras dessa União comunista; a contestação interna ganhava forma, corpo e força. O quadro era negro e havia que aliviar alguns dos apertos mais prementes para poder remediar um sistema político que estava a mostrar-se falível.

A solução era redesenhar as relações internacionais de modo a pôr fim à Guerra Fria, à concorrência armamentista, abrindo as fronteiras para se poder beneficiar do comércio externo, saltando de uma economia já só dita planificada para uma economia mista na qual o Estado tivesse um forte papel regulador. Para que um tal projecto tivesse viabilidade havia que, internamente, liberalizar a expressão do descontentamento, de modo a poder aproveitar o que de melhor contribuísse para uma mudança rumo a uma social-democracia sem prisões nem perseguições. Eram a Perestroika e a Glasnost que falharam nas suas linhas gerais porque se gerou a confusão interna e ‒ embora esteja por demonstrar ‒, se calhar, porque o Ocidente, através dos seus agentes secretos, acelerou a derrocada de todo o edifício político e económico soviético.

A completa verdade histórica está ainda por alcançar (será que alguma vez a poderemos reconstruir?), mas os traços mais largos que lhe marcam os contornos foram os que acabei de descrever. Convém a muitas memórias esquecê-los para incensar no altar dos heróis ou para fazer descer ao inferno dos traidores a memoração de Gorbachev.

 

Putin, porque conhece muito melhor do que eu a cor das tintas deste quadro, é um dos que, sem atirar para o inferno a memória do último Presidente da URSS, quer vê-la deturpada, adulterada, confundida, para obter créditos onde, se calhar, só tinha débitos. É o jogo político com toda a sujidade pútrida que o rodeia.

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