Quando a ternura se torna escola
(Para o meu Amigo José João)
Eu tinha seis ou sete anos e, embora fosse um miúdo bastante atento ao mundo à minha volta, não sabia ver as horas, num relógio, mesmo de sala, por muito grande que ele fosse.
Quase todas as semanas, no começo do Verão, ia brincar, uma tarde inteira para casa de uma família amiga dos meus pais. Tinham uma enorme selha de madeira para lavar a roupa, que eu aproveitava para brincar com os meus barquinhos de plástico. Claro que levava roupa sobressalente para mudar depois do grande festim.
A senhora mais velha, a mãe da amiga dos meus pais, era completamente analfabeta. Não lia uma letra do tamanho de um prédio. Numa tarde em que a brincadeira na selha não podia ter lugar, levou-me para a sala e, olhando o relógio de pêndulo, que estava em cima de uma grande cómoda, perguntou-me as horas. Fiquei a olhar para o aparelho e confessei a minha ignorância. Ainda por cima, a numeração era românica.
Ela, com aquela paciência dos velhos (no mínimo, os daquele tempo!) levantou-se e, levando-me até junto do relógio, foi-me ensinando a ler as horas através das diferentes posições dos ponteiros, grande e pequeno. Cheguei a casa, ufano e desejoso de mostrar os meus novos conhecimentos. À pergunta da minha mãe sobre quem me tinha ensinado, a resposta foi imediata: «A “mãe” Ircelina», forma carinhosa como eu tratava a velha senhora.
Foi a primeira vez que percebi que um cego pode ser guia de outro cego!
Há dias um velho amigo meu contou-me uma história extraordinária que, por a ter assim achado, não resisto a deixá-la aqui para os vindouros. Passa-se lá nos confins de Norte de Portugal em terras que foram calcorreadas por Miguel Torga.
O meu amigo, chamamos-lhe Zé, tinha seis anos e ainda não frequentava a 1.ª classe, não sabendo, então, os rudimentos da leitura e da escrita. Estando a passar férias em casa de uma avó, que não era nem professora nem lá por perto tinha feito vida, era uma senhora que, vivendo na sua quinta, frequentava a igreja local com devoção e seguia a missa e as celebrações eclesiais pelo seu livro de cabeceira: o missal.
Com a paciência das avós, com o amor de uma segunda oportunidade de ser mãe, tempo que a Natureza dá para redimir os “pecados” praticados aquando da primeira vez, ela, carinhosamente, ensinou o Zé a ler e a escrever, usando o seu missal como livro de iniciação. E o José aprendeu, tão bem que o pai determinou que ele não precisava de fazer a 1.ª classe, pois estava habilitado a entrar, de imediato, na 2.ª. E, perguntei-lhe eu: «Lias, mas e as contas, os algarismos?»
A resposta foi muito mais desconcertante: é que havia, na quinta, uma tia, já de idade, que todos os dias o levava a passear pela estrada, porque o Zé tinha, não só de comer bem, como de respirar ar puro e fazer exercício. Lá iam caminho fora andar umas léguas ora num sentido, ora no noutro e os algarismos ali estavam à mão de semear nos marcos hectométricos plantados nas bermas da estrada e a tia, com carinho e paciência, a cada cem metros levava-o a, com o dedito passar pelo baixo-relevo, identificando-os do 1 ao 9. Não só os fixou como aprendeu a desenhá-los.
Que história deliciosa, esta de duas velhotas, vivendo numa quinta perdida em Trás-os-Montes que, com os materiais mais simples e mais à mão tiraram das trevas, da total iliteracia, um menino que, sem as desiludir, acabou a vida de estudante como engenheiro electrónico, e viveu o resto como professor, ensinando Matemática e tantas outras coisas mais, porque, ao mesmo tempo que começou a ler palavras e números com apoio de um missal e de marcos hectométricos da estrada, aprendeu que o acto de ensinar é uma prova de amor que se dá aos outros com os carinhos das avós e das tias velhotas, que amorosamente o catapultaram para o mundo do saber.
Há quantas dezenas de anos se perderam os missais e os marcos hectométricos das estradas? E os meninos com desejo e humildade de ouvir e aprender com avós e tias velhas?