Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

15.04.21

Pedro Soares Martinez: um caso de estudo


Luís Alves de Fraga

 

Morreu há dias o controverso ‒ em especial para a gente da minha geração ‒ professor Soares Martinez, com a bonita e invejável idade de noventa e cinco anos com perfeita lucidez de espírito, sempre arguto e perspicaz.

De formação científica em Leis, foi professor na Faculdade de Direito onde regeu mais do que uma cadeira, mas notabilizou-se pelo Direito Corporativo, Direito Económico e História Diplomática. Foi, em Governo de Salazar, ministro da Saúde.

 

Nascido em 1925 acompanhou, desde sempre, o crescimento da Ditadura e, depois, com bastante mais consciência da vida e de si mesmo, o crescimento e evolução do regime salazarista, designado por Estado Novo. Criou-se dentro do fascismo português e por ele passaram momentos políticos marcantes: a Guerra Civil de Espanha, a 2.ª Guerra Mundial e a Guerra em África.

Para se poder compreender a mentalidade de um homem destes é preciso perceber que, enquanto tomava consciência de si e do mundo à sua volta, era literalmente bombardeado com a propaganda ditatorial, salazarista, nacionalista, imperialista, católica e conservadora. Não lhe conheço os antecedentes familiares, mas, mesmo que proveniente de uma família republicana e democrática, teria de ser muito actuante para ficar indemne à máquina propagandística da época. É que, só é possível compreender a formação das mentalidades daquela geração, se se for capaz de imaginar a ambiência do surgimento do Estado Novo. Vou tentar, num rápido flash, fazer sentir aos meus leitores a acção da propaganda política da época.

 

Em 1925 o fascismo de Benito Mussolini florescia em Itália e dava à maioria dos italianos orgulho nacional, pois saíra da Grande Guerra em profunda decadência moral colectiva. Na vizinha Espanha, Afonso XIII, aceitava a gestão ditatorial do general Primo de Rivera que, embora falhada nos seus objectivos, foi um relâmpago de esperança para alguns sectores sociais do país. Quase logo de seguida a República em Espanha espalha o terror junto das alas mais conservadoras e católicas ‒ e, neste particular, deixou-se enredar pelos anarquistas, que estabeleceram a grande confusão ‒ acabando por gerar o clima que levou à horrível Guerra Civil. Quando Franco venceu o conflito e fez desfilar em Madrid as suas forças, no dia 1 de Abril de 1939, Soares Martinez tinha cerca de treze anos, uma idade onde tudo o que se ouve é absorvido como uma esponja absorve a água. Mas, antes, tinha crescido ao som dos clamores hitlerianos, vindos da Alemanha. Apanhou a formação da Mocidade Portuguesa no seu início, na fase da sua acção ideológica mais marcante. Cresceu com a ideia de uma grandeza de Portugal desproporcionada, mas inventada através da afirmação imperial de um país que, com as suas colónias adicionadas, era quase da dimensão da Europa.

Provavelmente, quando a 2.ª Guerra Mundial acabou, terá sentido o primeiro abalo nas convicções que lhe haviam sido incutidas e com que crescera. Todavia, não nos podemos olvidar de que, por cá, estava no auge a propaganda salazarista, anunciando aos quatro ventos a milagrosa vitória de termos sido poupados aos horrores do conflito graças à mão firme do homem que segurava o leme da governação. Tal convicção enraizou-se com a prosperidade económica que a década de 50 fez chegar ao país. Salazar, o corporativismo, o sistema de partido único eram os obreiros de tudo o que o deve ter encantado. Por esses anos, abriram-se-lhe as portas da docência, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Era inevitável, já que ele foi um fruto acabado do seu tempo. Não ser agradecido ao regime deve ter sido coisa que jamais lhe passou pela cabeça.

 

Um professor crescido e criado neste caldo de cultura, nunca poderia compreender os estudantes que reclamavam por um outro tempo, um tempo que estava mais de acordo com os tempos em que haviam nascido. Era um verdadeiro conflito de gerações. Tudo isso justificou as suas atitudes à frente da Faculdade de Direito. Para ele, homem inteligente e com uma cultura vasta, embora orientada num só sentido, era necessário um terramoto que destruísse grande parte do edifício visível da sua formação ideológica. Tal fenómeno telúrico aconteceu em 25 de Abril de 1974.

 

Pedro Soares Martinez teve de aprender a viver com uma nova realidade: uma liberdade, que não era a dele e uma democracia, que não assentava no sentido de ordem em que crescera. Aprendeu e adaptou-se, pelo menos para poder sobreviver. Foi muito depois dessa fase, talvez vinte ou trinta anos mais tarde, que o conheci. E quem era Soares Martinez nessa altura?

Um senhor idoso, muito educado, com um polimento de trato que já não é usual nos tempos que correm, aparentemente não querendo defrontar ideias, mas apresentando as suas com cautelas e prudências capazes de parecerem aceitáveis.

Há, talvez, três anos, na lição, que me foi encomendada, de abertura de um colóquio, expus ideias sobre a 1.ª República e sobre a participação de Portugal na Guerra que fizeram nascer no velho Mestre as forças para arquitectar, durante mais de dez minutos de intervenção, os argumentos com que veria, julgava, destruída a minha exposição. Fê-lo com a educação académica usada na Universidade, sem arrogância, mas uma imensa subtileza retórica, só perceptível por quem conhece bem o meio. Delicadamente ‒ como convém ao discípulo reverente ‒ deixei-o chegar ao fim, enquanto tomava notas sobre os vários aspectos focados na exposição erudita do Professor Martinez.

A minha resposta, dada com a mesma delicadeza e brandura postas por ele na questão levantada, foi demolidora. Fugi à torpe argumentação do ataque pessoal, mantendo-me no mesmo campo e no mesmo tom por ele utilizados, mas foi no seu próprio terreno e com os seus argumentos que lhe repliquei. No final, veio-me cumprimentar e agradecer a resposta, dando-me oportunidade de lhe agradecer a exposição/pergunta que me fizera, pois, sem ela, não teria tido ensejo de dizer o que disse.

Soube, mais tarde, que, ao organizador do colóquio, o velho Professor havia tecido elogios à forma como eu me safara.

Foi a última vez que o vi e que com ele falei. Com ele desapareceu um grande esteio intelectual do regime fascista. Merece o meu respeito e desejo que repouse em paz.