Páginas do Meu Diário - 17
27 de Fevereiro de 2019
Dizer que em Portugal há brandos costumes é uma verdade e uma mentira, que, no Estado Novo ‒ o fascismo nacional ‒ foi explorada, até à exaustão, como uma verdade indiscutível e indiscutida e porque, uma mentira repetida mil vezes, torna-se uma verdade, todos nós, ainda gora, aceitamo-la sem nos questionarmos. E, vamos ver, se tenho ao não razão.
Sem grande esforço, basta consultar jornais do começo do século XX para por lá encontrar notícias muito frequentes de mortes à sacholada ou agressões em feiras onde tudo acabava varrido a varapau com cabeças rachadas, às vezes, mortalmente. Sobre a luta do pau leia-se, de Aquilino Ribeiro ‒ um mestre da literatura nacional vivo e activo até depois da primeira metade do século XX ‒ O Malhadinhas. Mas, se dúvidas houvesse, existem fotografias de soldados portugueses, do Corpo Expedicionário Português (CEP) em França, exibindo-se no jogo do pau para espanto dos oficiais britânicos. Eu mesmo, na minha infância, ainda assisti a demonstrações da classe do mesmo jogo, nos saraus de fim de ano do Lisboa Ginásio Clube. Em Portugal, matava-se e morria-se por razões de pequena monta. Durante a ditadura, o mito dos brandos costumes cresceu à sombra da comissão de censura, que tinha ordens para não deixar publicar notícias violentas. Excepcionalmente, viam a luz da publicidade as que, por serem do conhecimento geral, jamais se podiam cortar.
Mas, se é verdade esta falta de brandos costumes donde é que apareceu a tradição contrária?
Aí temos de recuar à segunda metade do século XIX e à política.
Creio que a mais evidente forma de manifestação de brandos costumes nos é dada pela caricatura. O seu autor foi Bordalo Pinheiro ao criar a figura de O Zé Povinho.
Um Zé campónio, com ar alarve, robusto, pachorrento, capaz de suportar todas as albardas que lhe quisessem lançar por cima. Esse mesmo Zé, cuja única revolta se traduz no manguito feito a preceito, mostra os brandos costumes face às tropelias da Monarquia e dos seus políticos. Ele continuou a ser brando através do crítico lápis de José Vilhena, na ditadura e, ainda, nos primeiros anos da democracia.
É no Zé Povinho, na minha opinião, que está a verdade dos tais brandos costumes e só nele, porque, com efeito, nós, tal como outros povos, numa análise de colectivos, somos tão agressivos, na disputa individual ou conjunta, como os demais. Na política, somos apáticos em vez de brandos.
E vamos à História buscar um exemplo vivo para provar o que afirmo.
Em 1834, a 26 de Maio, foi assinada, em Évora Monte, uma convenção que punha fim à guerra civil entre liberais e absolutistas, obrigando o, ainda infante, D. Miguel ‒ que se havia feito proclamar rei ‒ a exilar-se para sempre no estrangeiro, longe da Península Ibérica. Foi para Génova onde, ao desembarcar, reafirmou a sua condição de rei, facto que lhe coarctou, de imediato, a recepção da pensão pecuniária estabelecida no tratado, a perda da condição de infante e o regresso dele ou dos seus descendentes a Portugal, ficando banido da sucessão ao trono. D. Maria II viria, em Dezembro, a confirmar, com diploma legal, o banimento de D. Miguel e da sua descendência.
A Constituição de 1838 era explícita, no artigo 90.º, pois confirmava o banimento daquele ramo dos Braganças do reino. Porém, em 1842, a Constituição foi revogada (substituída pela de 1826) e não contemplando o artigo relativo ao banimento, assumiu-se que, deste modo, perdera legalidade. Contudo, D. Miguel e os seus descendentes mantiveram-se no exílio, aceitando a existência da proibição de residência no país.
Em 15 de Outubro de 1910, com a República proclamada em Portugal, foi decretada a “Lei da Proscrição” que obrigava ao exílio todos os membros de todos os ramos da família real portuguesa. Assim, estava reactivada a Lei do Banimento, de 1834, no que se referia a D. Miguel e toda a sua descendência.
E os brandos costumes onde andam no meio de tudo isto?
Vão surgir, com Salazar, com o fascismo português, com a ditadura capaz de tudo, até de reverter o que não devia reverter!
Em 27 de Maio (curiosa data!) de 1950, a Assembleia Nacional decretou o fim da Lei do Banimento, permitindo que os descendentes de D. Miguel ‒ todos nascidos no estrangeiro ‒ regressassem a Portugal, para, pelo menos tacitamente, se assumirem como pretendentes ao trono de uma monarquia extinta havia quarenta anos!
Os brandos costumes alçam-se à condição de mansos quando entrou no país o tal Duarte Nuno de Bragança, pai do tal Duarte Pio de Bragança: ninguém se revoltou, mesmo que só com ligeiros trejeitos admitidos pela soberana censura nacional. Nada! Tudo ficou manso como o Zé Povinho do Bordalo Pinheiro.
A desculpa ainda vagamente possível, seria:
‒ Era a ditadura, a ditadura e o fascismo!
Pois era, mas veio a democracia, a liberdade, a pluralidade e não se acautelaram os poderes ‒ dos comunistas aos democratas republicanos de direita ‒ exigindo que a “Lei da Proscrição”, bem republicana, fosse reclamada como lei desta República antifascista. Ficou tudo quedo e mudo com cara de bronco como são as fuças do pachorrento Zé Povinho. E ficaram assim estes cidadãos mesmo depois de ter sido discutida e aprovada, há poucos anos, a lista do protocolo nacional na qual é atribuído lugar a esse Duarte Pio descendente do D. Miguel, filho de D. Carlota Joaquina, mas, quase certo, filho de um amante de ocasião ‒ ou não ‒ dessa princesa espanhola, porque do putativo pai, o D. João VI, não era!
E aqui estão os brandos costumes portugueses que, a par de muita ignorância, muita lascívia, admitem que qualquer filho de uma mulher de comportamento duvidoso tenha lugar na lista do protocolo nacional.
Haja paciência…