Páginas do Meu Diário - 16
26 de Fevereiro de 2019
Fazendo contas por alto, vivi cinquenta anos da minha vida em regime de Guerra-fria ou seja, de confronto militar sem combate directo, entre o chamado Mundo Ocidental e a URSS ou Bloco de Leste.
Há muitas explicações para a queda da URSS e do regime comunista e eu também tenho a minha ‒ assumo a vaidade que se pode deduzir desta afirmação ‒ que ando a vender desde, talvez, 1992 ou 1993.
Preferem-se explicações dentro da caixa, o mesmo é dizer explicações que passam em exclusivo pelo teatro soviético. Eu vou mais longe e tento integrar a relação capitalismo-socialismo no âmbito da Guerra-fria.
Começo por explicações simples.
O princípio regente do capitalismo é o da sujeição da produção à procura definida pelo mercado: produz-se porque há procura; a procura é determinada pela satisfação de necessidades.
É esta relação uma das razões das sucessivas e periódicas crises do capitalismo: a sobreprodução faz baixar o preço e, por arrasto, conduz ao desemprego e à falência empresarial, gerando uma espiral de retracção económica.
O princípio regente do socialismo comunista (designação pouco ortodoxa que uso para facilidade de exposição) é o da planificação da produção, através da hierarquização das necessidades, anulando a acção do mercado.
É esta anulação que mina o sistema de economia planificada, porque as necessidades raramente são satisfeitas a contento de todos e, não sendo, induzem discordância dentro do aparelho político.
Teoricamente os dois princípios dão origem a dois tipos distintos de democracia e de liberdade: o primeiro, define a livre concorrência e a livre satisfação da vontade individual; o segundo, define uma democracia delegada, que se hierarquiza em escalões representativos de cujas resoluções não pode haver recurso individual. Em duas palavras, no capitalismo, o indivíduo sobrepõe-se à sociedade; no comunismo, a sociedade sobrepõe-se ao indivíduo.
Vejamos, agora, tudo isto em funcionamento.
Estando os dois blocos em oposição e em confronto potencial, do lado capitalista, por causa da liberdade de produção, a indústria de armamento, para satisfação da necessidade de defesa do seu sistema oferece aos governos das potências mais ricas e que mais têm a perder boas oportunidades de arsenais capazes de superar os do Bloco de Leste.
Ameaçados, os soviéticos, têm de dar resposta à concorrência do mercado e, fazendo-o, nos termos impostos pelo Bloco Ocidental, porque os recursos produtivos são escassos, reduzem a satisfação das necessidades dos cidadãos, limitando-as, cada vez mais, ao essencial. Novamente, em duas palavras: no Ocidente, não olhando a consequências, o objectivo é a produção concorrencial e, no Leste, é concorrer no plano armamentista e planificar no plano interno, ou seja, manter dois sistemas económicos antagónicos.
Se pensarmos que esta disputa durou cerca de trinta e cinco anos, percebemos que o elo mais fraco da cadeia era o soviético, pelo esforço imposto pela corrida ao armamento (que não se consumia) e pela incapacidade de satisfazer aspirações sociais que, naturalmente, com o decorrer dos anos, aumentavam mesmo quando sujeitas à desinformação imposta pela censura e pelo aparelho policial.
Se pensarmos um pouco mais, percebemos, também, que, afinal, a Guerra-fria não foi um conflito de políticas e de arsenais de armamento, mas resumiu-se a um único aspecto: através de fazer prosperar um país com o desenvolvimento da indústria de guerra, destruir a economia de outro, privando-o de planificar a produção de bens tão necessários à sua miserável população campesina e escravizada por uma política que lhe tirava a liberdade de expressão, bem superior de todas as liberdades. A isto e só a isto se resumiu a Guerra-fria.