Páginas do Meu Diário - 14
24 de Fevereiro de 2019
Há dias deixei aqui uma reflexão histórica sobre a perda da independência de Portugal, em 1580. Ao acordar hoje, apeteceu-me desabafar sobre a Restauração, em Dezembro de 1640. Essa restauração tão enaltecida primeiro pelas forças de direita fascista, no tempo de Salazar, depois, já em democracia, pelos saudosistas desse tempo e, agora, por democratas e nacionalistas, merece ser explicada, porque à volta desta data crescem mitos para servirem ideologias políticas. Mitos que, sem escrúpulos nem rebuço de quem os usa, mudam de sentido como o cata-vento da torre da igreja.
Curiosamente, esta maleita está, de certa forma, associada ao próprio acontecimento que, por nos ser querido, nos leva a não procurarmos a lógica que o justifica. Vou deixar aqui um apontamento que ajudará a manter-me lembrado destas coisas.
Em 1581, nas cortes de Tomar, com o peso e representatividade que essas assembleias tinham, gerando uma ténue película de democraticidade nas decisões tomadas pelo colectivo ‒ clero, nobreza e povo ‒, Portugal aceitou como legítimo rei o rei de Espanha, Filipe II, passando a ser primeiro entre nós, pois, como já havia sido destinado aquando do nascimento do Príncipe da Paz, filho de D. Manuel I e da sua esposa castelhana, não se perdeu a autonomia ‒ o reino continuava a ser o de Portugal ‒ já que haveria duas coroas numa só cabeça. E cabe aqui levantar mais uma ponta sobre estas curiosidades da História.
Se o rei de Portugal era também rei do Algarve, desde D. Dinis, é porque havia um reino distinto daquele que teria de acabar nas serranias que demarcam o Alentejo do resto do território a Sul. E havia, realmente. Mas não era independente. Então, por semelhança, também Portugal, em 1581, perdera a independência embora, em consonância com as decisões das cortes, continuasse autónomo. Uma autonomia que, com os anos, tendeu a diminuir. Mas não foi esta redução a ditar a revolta! Foram, mais uma vez, outras as razões que ditaram a revolta contra a Espanha.
De facto, sessenta anos depois do início da Monarquia dual ‒ mais quinze anos por cima do que o tempo que nos separa do 25 de Abril ‒ chegou-se à conclusão de que, afinal, os Filipes não eram reis legítimos! Simplesmente, espantoso…
‒ Mas sê-lo-á, assim? Não se tratará de mais uma forma de dar a volta a interesses novos e muito distantes daquilo que se divulga e, até, se ensina?
Vamos ver.
Por volta de 1620, como nos recorda um já esquecido historiador português ‒ Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal Económico ‒ começava a ganhar importância a produção de açúcar que trazia duas vantagens económicas: a compra e venda de escravos na costa ocidental de África e a exportação do apreciado produto para a Europa.
Um pouco mais à frente no tempo, já as especiarias do Oriente não rendiam grande coisa à coroa, nem a quem as comerciava, como havia acontecido cem anos antes. Também isto tinha explicação. A Inglaterra, a Holanda e a França espalharam a sua acção comercial para fora da Europa e praticavam-na no Oriente. Portugal, que tivera capacidade naval para derrotar e afastar a concorrência islâmica do Índico e da entrada do Pacífico, não possuía força, nem gente, nem dinheiro para concorrer com os Estados europeus que lhe roubavam mercados. Afinal, a união com a Espanha, tão desejada e bem aceite pelos burgueses comerciantes, rendera pouco durante poucos anos.
Do Brasil, aproveitando a inoperacionalidade do meridiano de Tordesilhas ‒ porque, agora, de nada valia por o soberano ser o mesmo ‒, chegavam notícias da exploração do interior e alargamento das fronteiras, ao mesmo tempo que o açúcar se mostrava uma mercadoria altamente rentável, mesmo tomando em conta a concorrência feita pela Holanda, França e Inglaterra todos eles em fase de instalação na América Central.
Começava a delinear-se a mais-valia de uma nova independência ou, melhor dito, da recolocação da coroa portuguesa na cabeça de um nobre que, por qualquer via, pudesse oferecer a legitimidade possível por descender de um rei português. Chamar-se-lhe-ia restauração.
Os benefícios cairiam, se os houvesse, na burguesia e na pequena nobreza resistente, que ficara confinada aos seus diminutos domínios, nas províncias de Portugal. Mas não era só por cá que haveria benefício; da restauração ganhavam os Estados em guerra ‒ a Guerra dos Trinta Anos ‒, particularmente a Holanda e a França, pois a abertura de novas frentes de combate ‒ Portugal e Catalunha ‒ iria aliviar a pressão espanhola no centro da Europa. Daí resultaram os apoios da França à causa portuguesa.
Por seu turno, em Lisboa, por troca do conflito com Madrid, pretendia-se que Paris fizesse incluir Portugal na guerra existente, de modo a que, ao ser negociada a paz com a Espanha o rei português ficasse, de imediato, liberto de combates, então mais fortes, com as tropas do Estado vizinho. Para satisfazer este desiderato era necessário arrastar, também, a Holanda para aderir a esta trama, mas interesses económicos específicos da finança holandesa opunham-se à jogada diplomática na medida em que preferiam manter uma guerra com Portugal, fora da Europa, de modo a poder espoliá-lo das possessões orientais, americanas (Brasil) e africanas (Luanda e São Tomé). É aqui, nesta difícil negociação, que entra o padre António Vieira, vindo do Brasil e que se destingiu pela habilidade discursiva e negocial, bem como por combater a acção do Tribunal do Santo Ofício perseguidor dos judeus-novos que tanta falta faziam a Portugal e às suas finanças, quer por poderem ajudar directamente quer por poderem auxiliar através das suas relações pessoais e familiares com o judeus radicados nos Países Baixos. E note-se, este jesuíta, fez renascer o mito sebastianista de modo a criar a ambiência necessária à aceitação de D. João IV entre os Portugueses pois, segundo dizia, ele seria uma reincarnação ou, melhor, uma reinvenção de D. Sebastião. Alimentou, também, o mito de um novo império português na obra História do Futuro, sendo tudo isto modos de encontrar legitimidades onde eram difíceis de existir.
Na teia das negociações diplomáticas falhou a França, pois estabeleceu uma paz separada com a Espanha e, embora, prestando auxílios secretos a Portugal, não fez incluir este nas cláusulas do tratado com Madrid.
A Inglaterra só aceitou honrar a velha aliança depois de por lá se ter restaurado a Monarquia, com Carlos II, após o período revolucionário de Cromwell. E foi por interferência e intermediação de Londres que Madrid estabeleceu uma paz perpétua com Portugal, selada pelo casamento do monarca inglês com D. Catarina de Bragança, filha do novo rei, D. João IV, duque de Bragança.
Perante este quadro ocorre-me reflectir sobre a decisão da Santa Sé, última potência a reconhecer o novo rei e a nova situação na península Ibérica.
Realmente, para além de se ter usado um documento falso de umas falsas cortes de Lamego, onde teria sido eleito D. Afonso Henriques como soberano de Portugal, estipulando a possibilidade de filha de rei vir a ser rainha, mas, não podendo casar com estrangeiro, menos ainda poderia fazer do seu marido, se estrangeiro, rei de Portugal.
Foi este documento falso que deu legitimidade a, sessenta anos depois, reivindicar a reposição de um erro!
A Santa Sé e a sua cúria podem ser acusadas de muita coisa, mas de estarem mal-informadas é que não. Assim, justifica-se que, só depois de Madrid ter reconhecido, de facto e de jure, Portugal como Estado independente, o Papa haja concordado com a restauração.
Custaria muito explicar isto em cada 1.º de Dezembro, deixando de fazer da data bandeira para arregimentar partidários seja do que for?