Páginas do Meu Diário - 13
23 de Fevereiro de 2019
Quando António Costa conseguiu estabelecer um acordo de incidência parlamentar com o Partido Comunista (PCP) e com o Bloco de Esquerda (BE) exultei com o facto. Era uma solução verdadeiramente histórica, porque única, em Portugal e jamais imaginada há trinta e tal anos. Correspondeu a uma situação que há muito se desenhava no nosso país: dos eleitores votantes a escolha apontava sempre para a maioria escolher a esquerda como refúgio, tendo em vista encontrar soluções para os graves problemas nacionais. Claro que, isoladamente, do Partido Socialista (PS) ao BE há abismais diferenças ideológicas, mas há ‒ para quem as quiser encontrar ‒ imensas pontes passíveis para, através delas, se conseguir um diálogo benéfico para os Portugueses. E António Costa arriscou dar esse passo, envolvendo os partidos estigmatizados desde o tempo do fascismo. Temo ‒ e os sinais estão à vista ‒ que todo o edifício se desmorone em função de um esticar de corda por parte do BE, porque, acho, o PCP tem tendência a ser mais realista e contido nas suas exigências.
Estas questões, que são do nosso tempo, só vêm para aqui por causa da tal estigmatização dos comunistas no tempo do fascismo.
Realmente, para quem viveu, como eu, trinta e três anos, dos quarenta e oito da ditadura, é fácil de perceber a perseguição, o ódio e a injúria lançados sobre os comunistas. A propaganda fez deles seres absolutamente hediondos, perigosos e anti-sociais. Eram a verdadeira ameaça para o Estado e para todos nós, segundo o que nos era ensinado.
Para se perceber este tipo de manipulação é preciso levar em conta alguns factores caracterizadores da sociedade portuguesa da época.
Comecemos por aquele que esteve mais próximo dos Portugueses e, por isso, constatável.
A 1.ª República, pelos objectivos que tinha, gerou um clima e corte social no país, situando-os em três pólos: as sucessivas revoltas de monárquicos entre 1911 e 1919, o confronto com o clero católico entre 1911 e 1926 e, por fim, a instabilidade partidária desde 1912 a 1926. Todos, em conjunto ou em separado, deram uma ideia bastante falseada do regime republicano, que a propaganda salazarista rapidamente se encarregou de ampliar.
A perseguição feita pelos republicanos ao clero reaccionário criou o ambiente necessário à aceitação de um possível ou admissível milagre na Cova da Iria, ao qual foi, de imediato, associada a necessidade de orar pela conversão da Rússia onde tinha acontecido a revolução soviética. Desta forma, foi espoletada a bomba fundamental de todos os fascismos e, evidentemente, por maioria de razão, a do fascismo português: a luta contra o comunismo.
Claro, depois de Lenine, Stalin deu uma preciosa ajuda para tornar o sistema soviético numa odiosa ditadura de partido único acobertada pela ideia de justiça social e de liberdade individual, ambas irrealizáveis seguindo os métodos da URSS. As duas doutrinas ‒ a soviética e a fascista ‒ tinham amplos pontos de contacto ‒ quase diria de identidade ‒ pois ambas eram concebidas a partir da ideia de liberdade colectiva com anulação da liberdade individual. Assim, a democracia representava uma forma orgânica de limitar a liberdade do indivíduo em nome da liberdade do todo. Deste modo se justificavam os atentados contra a revolução e o povo e os atentados contra a pátria e a nação.
Contribuiu, também, para o agigantar do ódio e do medo do comunismo o facto de, depois da ditadura militar (1926 a 1928) se seguir o salazarismo ‒ a variante do fascismo português ‒ cujas raízes se enterravam no obscurantismo católico, na ilusória moral dos bons costumes provincianos, no anti-modernismo de uma sociedade que se desejava tradicional e preferencialmente parada no tempo.
Por essa altura, também ‒ como se o já relatado não chegasse ‒ na vizinha Espanha eclodiu a guerra civil, pondo a nu, através de uma censura bem orquestrada, os crimes dos vermelhos e escondendo os horríveis massacres dos nacionalistas do general Franco.
Tudo caldeado em proporções certas e continuamente batido nos jornais, na igreja, na escola, na rádio, nos quartéis, nas prisões, nos tribunais, nos discursos a propósitos disto e daquilo fez crescer em todos nós ‒ em uns, de maneira desconfiada, em outros, com total e ingénua aceitação ‒ o anticomunismo que continua a existir nos mais velhos, porque a juventude está desligada da política, prestando-se a ser, se e quando devidamente estimulada, o chão onde florirá o populismo, pai e mãe, dos fascismos modernos.