O Regicídio
Aconteceu no dia 1 de Fevereiro de 1908 que D. Carlos I e o filho primogénito foram mortos na Praça do Comércio numa emboscada preparada para o efeito, supõe-se, com grande certeza, por membros da Carbonária.
A historiografia nacional tem abordado o assunto sob vários ângulos, quase o esgotando. Todavia, julgo, há ainda uma nova perspectiva para olhar o drama desse ano distante. É por ela que vou enveredar.
O século XIX foi, para os Portugueses, a centúria de uma forte tomada de consciência: viram o território pátrio invadido pelas tropas de Napoleão e, depois, em nome de uma aliança supostamente libertadora, viram-se dominados por um general britânico, que, formalmente, só deixou o país depois de uma revolução dita liberal, em 1820. Após toda a instabilidade que se seguiu, em 1834, acabou a guerra civil, abrindo as portas ao liberalismo político, o qual pouco alterou os costumes tradicionais. Reinou, de novo, a instabilidade até que, a meio do século, quando ia avançada na Europa a Revolução Industrial, entre nós começou a Regeneração, ou seja, a abertura ao capitalismo financeiro, que se limitou a trazer alguns, poucos, progressos materiais enquanto politicamente a alternância bipartidária se instalava como forma de governo. Em 1871, um grupo de jovens intelectuais, já antes comprometido, em Coimbra, com uma problemática político-literária, chamou a atenção de Lisboa e dos centros mais esclarecidos do país para o facto de todo o atraso português se dever à forte e exagerada influência da Igreja Católica em Portugal, desde os tempos do reinado de D. João III, o mesmo é dizer, desde o século XVI.
Esse foi o rebate de consciência necessário para alguns sectores habituados a discutir livremente as ideias aceitarem que era preciso acabar com o regime e implantar uma República, dando, verdadeiramente, a palavra e a vontade ao Povo. E esse pensamento ganhou mais raízes quando, em 1890, a Inglaterra, por causa de uma questão colonial, enviou ao Governo de Lisboa o instrumento diplomático mais afrontoso que se usa em relações internacionais: um ultimato! E Portugal teve de ceder. E os Portugueses sentiram raiva da Aliada, e, sem o dizerem, raiva de si! Uma raiva que vinha, afinal, sendo calada, engolida como fel, desde o inicio do século, desde há outros séculos passados, desde que tinham sido obrigados a bater com a mão no peito e a gritar “mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa”! Quando lhes ensinaram que a cerviz era para andar baixa ao serviço da Igreja! Quando se lhes calou a verdade dos versos de Camões: «E dizei senhor o que é mais excelente/ Se ser do mundo rei se de tal gente!». Quando, ainda no dizer do vate: «Fraco rei faz fraca a forte gente».
E o século XIX português foi o século da tomada de consciência de um passado que havia sido de glória e estava reduzido a um ricto que espelhava fracasso, a um tempo de ranger de dentes e de tristeza, a um tempo de vergonha. E culpavam-se a eito os Governos, a Monarquia, a Realeza, a nobreza, a aristocracia, os latifundiários absentistas, os ricos, os que sabiam ler e os analfabetos. Culpavam-se todos, porque, afinal, todos eram culpados.
O crítico criava a imorredoira figura do Zé-Povinho, mas, ao moldá-la, moldava-se e imortalizava-se! A ele e a todas as gerações que o antecederam! O Zé-Povinho queria aliviar-se da canga que o humor do ceramista Rafael Bordalo Pinheiro lhe havia posto nos lombos; queria desfazer-se daquele rosto vulgar, daquela cara labrega, daquele ar ignaro, daquele jeito submisso e, porque não conseguia ver-se ao espelho, porque não conseguia suportar-se, porque a realidade era muito dura de ser vivida, o Zé-Povinho supôs que, se acreditasse num milagre, deixaria de ser alvo do riso de si mesmo para ser igual aos povos da Europa para quem olhava desconfiado e matreiro.
E o Zé-Povinho armou-se e matou o Rei! Matou o rei para não se matar a si! Porque, lá bem no fundo, quem o Zé-Povinho não suportava era a si! Não se suportava e matou o Rei, tal como matou um Presidente, tal como matou a 1.ª República, tal como matou uma ditadura, tal como quer matar um Governo que já não governa e se governa!
O Zé-Povinho, afinal, tem uma enorme incapacidade de se enfrentar, de olhar para dentro de si e dar de caras com um tipo de quem tem repugnância, por isso, todos os dias se mata, se suicida, dizendo mal de si, acusando-se de todos os defeitos e incapacidades, porque o que melhor aprendeu foi, agora já não em latim, mas em língua vulgar, a dizer, batendo com uma pedra no peito: Minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa! Porque o que entre nós prevaleceu e prevalece há séculos foi o fraco rei que fez fraca a forte gente!