O primeiro rescaldo
Já passaram dias suficientes sobre o fim das Jornadas da Juventude e da partida do Papa Francisco. Podemos agora iniciar o rescaldo desse “fogo” que foi a presença do líder da Igreja Católica Romana entre nós e começo pelo fim, o mesmo é dizer, pela viagem de regresso a Roma.
A RTP 3 transmitiu a conferência de imprensa que Francisco concedeu aos jornalistas que o acompanhavam no avião da TAP e, a dado passo, houve alguém que levantou a questão da comunhão dos divorciados e dos homossexuais.
Escutei atentamente a resposta, dando-me conta, pela primeira vez, da capacidade do Sumo Pontífice da Igreja Católica responder sem dar resposta, repetindo o já estafado argumento de que a Igreja acolhia todos. Contudo, acrescentou uma pequena frase: «cada um, depois, tem de fazer o seu caminho». É um quase nada, mas, também, um quase TUDO, pois esta resposta é dada para fora da Igreja, mas, também, para dentro da mesma e, talvez, com maior intensidade para DENTRO do clero.
Fui ver o que nos diz o Direito Canónico e o Catecismo e tal pesquisa feita com brevidade de modo a perceber o que é «o seu caminho».
Para os divorciados e casados de novo não há remédio possível: não têm acesso nem à confissão nem à comunhão. Contudo, pertencerão à Igreja e não viverão em pecado se assumirem, ambos os cônjuges, voto de castidade, vivendo como irmãos, o mesmo é dizer que o matrimónio católico continua vigente nos seus comportamentos.
Para os homossexuais a resposta é semelhante: manutenção da castidade.
Em ambos os casos poderão confessar-se e comungar.
Será que o Papa Francisco gostaria de ver alterado este rigor canónico? Em consciência, e tendo já lido alguma coisa sobre as reformas que ele vem introduzindo e sobre a sua maneira peculiar de entender o cristianismo, creio que ele não teria dúvidas em fazer modificações. Quais e até onde, não tenho ideia.
Mas que rigor é este e de onde vem? É o que vou tentar, em breves palavras, resumir.
O tema divórcio é tratado nos Evangelhos oficiais por São Mateus, no capítulo 19 (repisado por São Lucas, capítulo 16) e, na velha Bíblia que me acompanha há cinquenta e cinco anos, lê-se assim: «Pois bem, o que Deus uniu, não o separe o homem». Curioso é que o Professor Frederico Lourenço, tradutor dos Evangelhos partindo dos originais gregos, diz o mesmo, mas acrescenta em nota de rodapé que Jesus se refere, no diálogo travado com os fariseus, não a Deus, mas a passagens do Antigo Testamento quando, afinal, são um aparte explicativo do livro de Génesis. Assim, em definitivo, Jesus disse o que disse, mas baseado numa explicação do Velho Testamento. Claro que, deste modo, caímos na problemática central do cristianismo, a Santíssima Trindade: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. E a Igreja de hoje impõe um ponto de vista baseado em mais de dois mil e vinte e três anos! Qual é a diferença desta regra de comportamento social e moral e as impostas pelos rigorosos muçulmanos que interpretam o Corão da forma mais retrógrada, não levando em conta que já passaram mais de mil anos sobre o ditado de Maomé?
Esquecemos que por trás da indissolubilidade do matrimónio, desde que o Homem se sedentarizou, estiveram sempre interesses materiais, tais como dotes, heranças e sucessões. Esquecemos que na nossa cultura judaico-cristã os casamentos, até muito tarde, eram combinados entre os pais e familiares dos nubentes, facto que, ainda hoje, é comum em culturas distintas das nossas. Ora, Jesus falou condicionado pelas regras herdadas do passado e para homens do seu tempo.
É um arcaísmo e uma contradição impedir a comunhão a divorciados ‒ porque são adúlteros ‒ mas, ao mesmo tempo, admitir que Deus perdoa todos os pecados e que é compassivo.
Estamos, realmente, perante a incapacidade de “dar liberdade a um Deus” a quem a sua Igreja põe grilhetas quase inamovíveis. Quem sou eu para tirar estas conclusões ao lado do Papa Francisco? Deste modo, aquele que se senta na cadeira de São Pedro tem muita razão quando pede que rezemos por ele.