O exemplo da monarquia portuguesa
Com a sucessão de Carlos III no trono do Reino Unido fala-se já em mudanças várias que, de certo modo, estavam “conservadas em formol” no tempo da sua mãe, Isabel II: o abandono de uma Commonwealth onde ainda há Estados cujo Chefe é o rei do Reino Unido para se tornarem em repúblicas; o desfazer do Reino Unido com a separação da Irlanda; uma quase separação da Escócia, que pretende voltar à União Europeia; e, por fim, a possibilidade do surgimento de uma república naquilo que hoje ainda é Reino Unido. São hipóteses que se colocam e se podem tornar realidade no todo ou na parte.
Mas, são hipóteses que têm fundamento num tempo em que os povos procuram, por um lado, formar grandes blocos de alianças económico-militares e, por outro, marcar a independência cultural que os distingue dos vizinhos do lado. Temos, por exemplo, uma Espanha unida, mas autonomizada em regiões culturais, administrativas e políticas, uma Bélgica, uma Suíça, isto na Europa, para não nos situarmos noutros continentes.
O caso do Reino Unido é, talvez, com a Commonwealth, bem distinto de todos os outros, pois é um arremedo de império, sem, na verdade, o ser. Contudo, curiosamente, seguiu, um século depois, o exemplo de Portugal, que, tanto quanto me parece, foi pioneiro numa solução retardadora de uma independência esperada e, até, já desejada na colónia em causa. Creio, vale a pena recordar.
Quando a invasão francesa dos exércitos de Napoleão Bonaparte era já inevitável, o regente D. João, seguiu o conselho do governo de Londres e fez-se transportar para o Brasil. Ele e toda a corte, assim como todos os bens que foi possível reunir à pressa para embarcar na imensa armada.
Deve deixar-se claro que a Inglaterra não ofereceu este enorme apoio a Portugal nem por causa da aliança que une os dois Estados, nem por causa das muitas simpatias que poderia ter ‒ e não tinha ‒ D. João junto de Londres. Fê-lo como uma segunda intenção: conseguir levar o regente a tomar a decisão de acabar com o monopólio do transporte marítimo por parte de empresas nacionais, abrindo os portos de Brasil à navegação internacional, que, por acaso, naquele momento, se limitava à grande marinha mercante britânica. Foi isto que aconteceu, mal a corte pôs pé em terras de Vera Cruz.
Claro que esta mudança alterou, por completo os hábitos da burguesia agrária e comercial brasileira. Deve ter sido tão notável essa mudança, acompanhada dos ventos independentistas, que varriam a América do Sul, que D. João, já rei, tomou a decisão de elevar o Brasil colonial à condição de reino parceiro de Portugal e Algarves. O monarca português estava a adiantar-se ao movimento que acabaria por levar à independência do Brasil. Era algo equivalente, do ponto de vista político, ao que acontece nos dias de hoje quando se proclama uma autonomia. Os territórios de presença portuguesa em África ainda não tinham a importância que tiveram depois e, menos ainda, o que restava na Índia, que já quase só davam prejuízo.
Com a Revolução Liberal de 1820, já mais de um lustro passado sobre os perigos franceses, mas para aguentar o Brasil bem preso a Portugal, D. João VI, foi-se deixando ficar por terras da América. Era, de certeza, uma manha para conservar intacto aquilo que ele sabia ser ambição inglesa… Para a gente da Inglaterra, deu o rei, como entretém, os reinos de Portugal e dos Algarves, que, por tal facto, perdia-se o que já de si pouco valia, para manter o mais precioso rincão sob a sua real coroa. Beresford era um reizete em Lisboa, enquanto à volta do monarca português se congregava a burguesia brasileira. Não esteve mal pensado o estratagema; estragaram-no a Revolução do Porto e mais as ideias liberais.
Após o regresso do monarca, na esperança de manter de pé a estratégia que limitava movimentos aos ingleses, deixou D. João VI, no Brasil, o seu filho primogénito, D. Pedro; podia ter deixado qualquer um dos outros (macho ou fêmea), mas este era a garantia da continuidade dos Reinos Unidos.
Enganou-se, não pelo filho, mas pelo desenrolar rápido demais dos acontecimentos em terras de Vera Cruz. D. Pedro teve de se adiantar, para que o Brasil não se esfarrapasse em várias repúblicas como estava a acontecer às colónias espanholas; ele ia ser, tanto quanto possível, ainda em nome do passado colonial, o baraço que manteria unidos os territórios brasileiros.
Depois do grito do Ipiranga, uma fórmula de ganhar um Brasil grandioso e inteiro, e a intransigência das cortes de Lisboa, só restou ao D. João VI, quando a instâncias inglesas ‒ que outras haviam de ser?! ‒ se viu forçado a reconhecer a independência do seu amado Brasil, ainda impôs ‒ em vão, diga-se de passagem ‒ que lhe fosse atribuído o título de imperador do novo Estado.
O que foi este último estertor do monarca português senão algo igual à criação da Commonwealth que surgiu, cem anos depois no Reino Unido?
Afinal, os políticos britânicos não inventaram nada de novo! Portugal e o rei D. João VI já haviam ensaiado a suposta solução britânica cem anos antes, para ultrapassar as dores de um “parto” sempre amargurado, que é essa coisa bela de dar mundos ao mundo.