O Elefante e os cornos
Há cinquenta anos não era vulgar o que, na actualidade, é frequente: oferecer envelopes com dinheiro aos noivos aquando do casamento; ia-se a uma boa loja escolher uma boa prenda que ficasse bem na nova casa ou fosse útil ao novo casal. Era sempre uma dor de cabeça, em especial para as famílias da média classe média para quem o dinheiro era contado e recontado antes de se chegar ao fim do mês. Muitas vezes, lá se tinha de ir às poupanças, normalmente parcas, para se procurar fazer a melhor figura possível. É que, para além da prenda ainda havia os trajes das senhoras, em especial, que tinham de mandar fazer ou vestido ou fato completo e mais abafo, se o acontecimento tivesse lugar no Inverno ou numa Primavera menos quente. Era sempre uma dor de cabeça para as mulheres e um “aperto de calos” para os cavalheiros que tinham de abrir os cordões à bolsa para fazer face a tanta despesa. Mas faltar a um convite de tal natureza isso nunca! Passar por pelintra e de forreta, isso jamais. Que se fossem os anéis, pois ainda haviam de ficar os dedos.
A minha santa mãe todos os anos rezava aos seus anjinhos para que não houvesse casamentos no decurso dos doze meses, pois lá se iam os cobres para a prenda, que tinha de ser boa, e, depois, mais outro tanto para tecidos e costureira em vestidos novos, porque ir com um que já havia servido noutra ocasião “não ficava bem” e nunca se sabia se entre os convidados não se repetiam as caras. O que se iria dizer! E, com os sapatos, a mesma cena se passava.
Eram assim as preocupações de uma pequena burguesia urbana, que, sendo pequena, não gostava de o parecer. E foi assim que, tinha eu, talvez quatro a cinco anos, dei origem a uma cena que me ficou gravada na memória até sempre, dadas as razões que passarei a explicar.
Havia (não sei se ainda por lá está) uma loja de porcelanas, peças de vidro, candeeiros e outros adornos caseiros, na Rua da Palma, em Lisboa, chamada “Vicrilana” (se a memória não me está a atraiçoar… acabei de verificar no Google e continua a existir, embora bem diferente do que era há quase oitenta anos), onde a minha mãe comigo e a minha irmã, mais velha sete anitos (o que a fazia, por essa altura, uma jovem menina atinada e muito bem comportada, aliás, como sempre foi, pelo menos desde que tenho memória dela) se deslocou com a intenção de comprar uma boa peça de cristal para oferecer a alguém que se casava por essa época.
Diga-se, em abono de todas as verdades, que eu era uma criança super traquina, cheia de vida e com um espírito de observação fora do vulgar para aquela idade, por isso, fui avisado, à entrada da loja, para ter muito cuidado e não fazer gestos bruscos, eufemismo para dizer qualquer coisa do género: «Não se corre dentro do estabelecimento, nem se mexe em nada e anda-se com cautela para não partir objecto nenhum, pois não estou para pagar os estragos que faças e se os fizeres ainda apanhas uma sova quando chegarmos a casa!»
Entrámos e, lembro-me muito bem, pisava o chão como se por lá estivessem cascas de ovo para não serem partidas, mas, eis que algo de muito estranho me chamou a atenção, a mim, que já vira fotografias e estampas de elefantes: uma muito grande (pareceu-me na altura) estatueta desses paquidermes, mas exibindo dois aguçados dentes brancos ao lado da tromba erguida para os céus.
‒ Mamã, este elefante tem cornos! ‒ disse eu em voz bem alta para ser ouvido por toda a gente.
‒ Está calado Luís Manuel (quando assim me chamava era porque a coisa não estava segura para o meu lado). Contudo, há evidências que não me calam, mesmo sob o efeito de uma forte ameaça e, o pior, é que já era assim na mais tenra idade…
‒ Mas tem cornos, eu estou a ver ‒ insisti, apercebendo-me do perigo, mas jogando com o factor geográfico (não estávamos em casa).
A minha querida irmã gesticulava moderadamente para eu me calar, mas fiz-me desentendido e continuei especado diante da estatueta de braço levantado e dedo estendido pronto a repetir a frase. A minha mãe, que tinha uma lindas unhas compridas e bem feitas, pintadas com verniz vermelho, aproximou-se de mim e, estendendo a mão para a minha coxa, deu-me um beliscão como só ela sabia dar… doíam que se fartavam, mas não faziam nódoa negra, e disse-me ao ouvido: «Aquilo são dentes e se voltas a dizer que são cornos vais ver a sova que apanhas em casa!»
Fiquei calado, embasbacado em frente do elefante, esfregando a coxa, e a digerir o ensinamento de que há cornos que sobem até à cabeça e outros que descem até à boca. Foi a mais inesquecível lição de zoologia que tive na minha vida!
Quem me dera poder voltar atrás para a aprender de novo.