O Acordo
Foi há dias, a 22 de Junho, que através dos esforços conjugados do Secretário-Geral das Nações Unidas, o engenheiro Guterres, e do Presidente da Turquia, Erdogan, que se estabeleceu um acordo entre a Rússia a Turquia e a ONU, bem como entre a Ucrânia e as mesmas entidades, para se criar um corredor marítimo, no Mar Negro, com o fim de poder fazer seguir para os seus destinos africanos os milhões de toneladas de cereais que se acumulam no porto de Odessa. Claro que Moscovo aproveitou para conseguir fazer sair, também, alguns dos seus produtos pelo mesmo mar, com iguais destinos. Destinos fixados no Norte de África e em outras zonas daquele continente que está a ser visitado por um alto representante russo. Julgo, para o Kremlin a última coisa que deseja é pôr-se de mal com os africanos que o apoiam.
O acordo foi uma vitória para a Rússia, que conseguiu assim limpar uma parte da sua imagem já bastante denegrida no Ocidente. Para a Ucrânia devia representar uma vantagem, porque liberta os silos para receberem a nova colheita e, ao mesmo tempo, uma forma de recompor as finanças tão abaladas pela guerra.
Para Erdogan o acordo teve especial importância, porque o projectou como figura charneira entre a Europa e a Eurásia, entre a OTAN e a Rússia e entre o mundo que quer a paz e o mundo que alimenta a guerra.
Estes são os efeitos lógicos e imediatamente visíveis do acordo, que, para as Nações Unidas, foi também uma vitória, pois colocou este organismo internacional como intermediário entre a paz e a guerra, talvez nem sempre desejada, entre os EUA e a Rússia.
Mas suponha o leitor que, apreciando uma partida de xadrez entre dois grandes jogadores e sabendo o suficiente das regras daquele jogo, quer adivinhar as razões que levam os oponentes a mexer determinadas peças, em vez de outras e ou a deixar comer peças importantes em jogadas arriscadas. Sendo um jogo essencialmente estratégico os espectadores têm e devem colocar todas as hipóteses para compreender o que pode passar na cabeça de quem tem a responsabilidade de atacar e de defender.
Vem isto a propósito do facto de, quase não tinham passado vinte e quatro horas sobre as assinaturas dos acordos, já se dizia que a Rússia tinha bombardeado o porto de Odessa furando, desta maneira escandalosa, o primeiro balão de oxigénio que parecia ter surgido desde Fevereiro até ao presente.
Assim, convido o leitor a acompanhar-me na deambulação sobre as vantagens e a desvantagens deste ataque sobre a mais importante cidade portuária da Ucrânia.
O que é que Putin e a Rússia ganham com o ataque ao porto de embarque? Nada, rigorosamente nada e perdem tudo, absolutamente tudo, depois de terem tido uma vitória diplomática retumbante na Turquia. Será que o todo poderoso senhor da Rússia tem uma pistola especial para dar tiros nos pés, nas pernas, na cabeça, fazendo demonstrações públicas de uma perfeita e completa estupidez? Não acredito! Não acredito eu, nem deve acreditar ninguém que perceba alguma coisa de estratégia e de como se fazem acordos, propaganda e contrapropaganda. Claro que, às vezes, e por razões estratégicas, convém fazer de conta que se acredita, mas é só um jogo de faz de conta para manter aparências e, de propósito, transcrevo do sítio do Sapo, o que lá se dizia, ontem, dia 23, pelas 19 horas: «Guterres condenou "inequivocamente" o ataque e enfatizou que "a implementação completa de [do acordo] pela Federação Russa, Ucrânia e Turquia é imperativa" ‒ note-se a subtileza, ele não condena ninguém, condena o ataque!
Então, surge a pergunta: «Quem mais é que tira vantagem do bombardeamento de Odessa, que, não sendo feito pelos russos, foi feito por alguém?» A resposta, por muito estranha que possa parecer, é uma só: a Ucrânia! A Ucrânia, até por ser a mais improvável potência sobre quem recaiam as acusações. Vamos ver.
O que é que interessa, realmente a Kiev e ao Presidente Zelensky: vender os cereais ou manter uma guerra da qual ele possa ser o herói que leva à derrota ou, pelo menos às cordas (numa linguagem própria do box), a grande Rússia?
Meus caros leitores, não tenham a menor dúvida, entre cereais e armamento, ele prefere as armas. Está-se nas tintas para a fome no mundo! Ele e todos os ucranianos que não são afectados pela guerra ‒ basta ver a normalidade da vida nas cidades do Oeste ucraniano (como tudo isto me faz lembrar a velha urbe de Lourenço Marques, no tempo em que se lutava e morria no Norte de Moçambique!... é que a distância entre Mueda e Maputo é, em linha recta, 7 750 Km) ‒, pois o importante é, se possível, a reconquista dos territórios já ocupados pela Rússia. Zelensky quer armas e quer guerra, porque sabe que a paz se vai fazer à custa da perda de uma parte do território ucraniano.
Mas, nisto do acordo para a saída dos cereais também houve outro Estado e outra política e outra estratégia que saiu a perder: os Estados Unidos. Washington e o Pentágono querem vergar o poder militar da Rússia e levar a União Europeia a reconhecer a sua própria inutilidade como potência produtiva (para tal há que a dividir, que a separar, que gerar a hostilidade entre os Estados membros).
Repare-se que na Europa, nem um único Estado, se associou aos esforços das Nações Unidas para se chegar ao acordo sobre a saída dos cereais. A Europa, subserviente, alinhou com os EUA e com o cântico americano. Bruxelas reforças as sanções ditadas pelos EUA.
Se olharmos o acordo dos cereais e o bombardeamento de Odessa segundo os ângulos que acabo de expor ‒ e sou um mero espectador deste jogo de xadrez que nada ganha e nada perde ‒ se calhar compreendemos melhor as meias palavras que o major-general Carlos Branco, ontem à noite, deixou suspensas na CNN Portugal com o pedido de se fazer uma averiguação séria sobre as recentes ocorrências. Tudo o que ele disse já me tinha passado pela cabeça. Por que terá sido?
Em tempo: Acabei de ler uma notícia do Jornal i, veículada pelo sítio Sapo.pt, datada de dia 24 de Julho, às 12h19, que transcrevo: «"Os mísseis Kalibr destruíram a infraestrutura militar no porto de Odessa, com um ataque de alta precisão", escreveu Maria Zakharova na rede social Telegram.» Sendo que esta senhora é a porta-voz da diplomacia russa (estou a reproduzir as palavras da notícia).
Esta informação em nada nos garante veracidade. Há dias recebi, enviado por um bom e confiável amigo meu, por e-mail, um texto intitulado "As Burras" assinado pelo, também meu amigo, Carlos Matos Gomes, coronel reformado do Exército e escritor - assina Carlos Vale Ferraz -, a quem, de imediato telefonei, por ter estranhado algumas afirmações feitas. Do lado de lá, o meu camarada garantiu-me que nunca escreveu tal texto, o qual anda a circular na Internet há dois anos. Notícias falsas. Pergunto: «Desde quando uma afirmação feita numa rede social pode ser tomada como uma realidade oficial?