No Outono cai a folha – 02
O meu carro
Não, meus Amigos, não vos vou incomodar com histórias do meu automóvel… Às vezes dá-me dores de cabeça, mas isso são contas de um outro rosário.
Já lá vão uns quantos meses que, antes de adormecer, à noite, na cama (depois de ter feito tudo o que se deve fazer fora e dentro do leito conjugal), me mantenho quedo a pensar no tema do texto que hei de começar a escrever na manhã seguinte. É o momento de uma de duas coisas: ou ganho uma insónia, tal é o turbilhão de ideias que me assalta ao bestunto ou, então, sai à primeira qualquer coisa a que poderei dar forma sem mais cuidado, no dia seguinte. De seguida, acomodo melhor a cabeça na almofada e entro no mundo delicado e fantástico do onírico, deixando-me ir suavemente.
Creio que todos nós já sentimos a estranha impressão da diferença de dimensões entre o que recordamos de muito criança e o que vemos já adulto: o que nos parecia imenso surge-nos como pequeno, às vezes ridiculamente minúsculo.
Pois bem, lembro, agora com imensa saudade, um “automóvel” de pedais que tive quando era menino pequeno, mas já suficientemente capaz de o locomover com a força das minhas pernas e pés. Era verde, e, como não havia ainda a indústria do plástico, de metal, com rodas de borracha.
A casa dos meus pais parecia-me, então, enorme e, como era comprida, maior era a dimensão. Ainda sem grande jeito para conduzir, recordo-me que andava aos ziguezagues batendo nos rodapés e nas paredes. Valia que a minha mãe não se importava, pois estava desejosa de mandar tirar o papel de parede com que o anterior inquilino havia decorado todas as divisões. Assim, o restauro previa pinturas e rebocos.
Confesso que durante muitos anos esqueci a existência do meu velho “automóvel” e só agora me vêm à memória pequenos farrapos de recordações desse brinquedo que, não sei porquê, desapareceu lá de casa, restando, durante muitos anos, somente o volante metálico, amarelo e pesado. Depois, começou a era dos soldadinhos de chumbo e pouco mais, já que, segundo a minha mãe, o dinheiro era pouco para “essas coisas”.
Imaginativo e sonhador, “inventei” os meus próprios brinquedos e os meus “companheiros” de folguedo. Na verdade, conseguia “ver” os meus “guerreiros”, as minhas motocicletas, os aviões que pilotava e as “invasões” dos “países” inimigos. Não há dúvida, fui um perfeito fruto da 2.ª Guerra Mundial e, quando ela acabou, cultivei todo o saber possível sobre os acontecimentos graças à pequena, mas muito seleccionada, biblioteca do meu pai, naturalmente pró-aliada, como seria de esperar numa ditadura simpatizante do fascismo italiano e do nazismo alemão. Mas, o que li serviu-me para, muito mais tarde, poder fazer as interpretações correctas
O meu carro de pedais deve ter acabado na loja do ferro-velho do fim da nossa rua onde o meu pai pagava para ele ir buscar a casa aquilo de que se queria desfazer.
Memórias de quem ainda anda por cá…