Liberdades e Democracias
(Este texto é dedicado ao meu Amigo e Camarada de Armas Engenheiro José João Roseira)
Poder-se-á falar de liberdades e de democracias, no plural, ou dever-se-á considerar como correcta a singularidade da Liberdade e da Democracia, propositadamente grafadas com maiúsculas?
Eis a questão sobre a qual vou discorrer.
Não pretendo retrogradar no tempo mais do que o suficiente para que se compreenda a tese que defendo: a pluralidade do conceito de liberdade e de democracia. Assim, basta-nos ir até ao século XVII, à Revolução Inglesa, para detectarmos os primeiros arremedos teóricos da luta pela liberdade individual (John Locke) e cotejá-los com a Revolução Francesa, no final do século XVIII, para percebermos quanto se afirmou o desejo de realização dessa liberdade, tanto no plano social como nos da política e da economia (Jean Jacques Rousseau, David Ricardo e Adam Smith).
Na verdade, a especulação teórica contra o absolutismo real, levou, também, à especulação sobre a liberdade económica. Deste modo, julgo não errar, posso afirmar que da Revolução Inglesa à Revolução Francesa e à Revolução Industrial não vai grande distância na defesa do direito do indivíduo se afirmar pelo seu eu próprio enquanto cidadão e produtor de riqueza. Ou seja, com a realização da separação dos poderes (Montesquieu) assumiu-se que a liberdade do indivíduo acaba onde começa a liberdade do seu semelhante. Todavia, esta afirmação é altamente falaciosa. Vejamos.
Se a minha liberdade acaba onde começa a do outro, a ideia nascida das Revoluções Inglesa e Francesa, que se passou a designar por liberalismo, permite ‒ na teoria e na prática ‒ que eu leve tão longe a minha liberdade que reduza a nada a liberdade de quem se me opõe. Então, por força desta razão, na economia, a salutar lei da oferta e da procura, ver-se-á completamente deturpada, pois, posso e devo ‒ para realizar o máximo lucro ‒ expandir até ao extremo a minha liberdade, esmagando a liberdade de quem trabalha para mim, por lhe retirar direitos. Esta é a liberdade liberal traduzida no primado da liberdade individual. Foi esta liberdade que deu forma à democracia liberal, com poderes separados, tornando-se naquela que mais prezamos por nos dar garantias de defesa dos nossos direitos individuais.
No século XIX, em pleno desenvolvimento da Revolução Industrial, logo, no tempo do verdadeiro esplendor do liberalismo, surgem as grandes contestações a esta doutrina política, económica e, por isso, social. Contestações que vão do socialismo utópico (Saint-Simon) ao anarquismo (Proudhon), passando pelo socialismo científico (Marx e Engels que fazem uso da dialéctica de Hegel).
Em síntese, todas se concentram no excesso de liberdade preconizada pelo liberalismo, porque, se à partida, todos os homens nascem iguais e com igualdade de oportunidades, o certo é que nem todos reúnem condições para realizar as potenciais oportunidades, facto que, realmente, estabelece a desigualdade. Por conseguinte, é a economia quem dita a necessidade de alterar a doutrina política.
Foi durante a Grande Guerra e logo nos anos imediatos que se concretizaram dois modelos políticos de contestação ao liberalismo económico e político: o sovietismo na Rússia (Marx apropriado por Lenine) e o fascismo na Itália (Mussolini). Ambos vão, cada um à sua maneira, dar novo significado ao conceito de liberdade e, consequentemente, de democracia. Vejamos como.
Na Rússia, Lenine, aproveitando ainda a lembrança da servidão da gleba tão vivo na memória dos camponeses e a pouca experiência de um operariado recente, socializa os meios de produção (fábricas), acabando, deste modo, com o conflito entre o trabalho e o capital (este, sendo pertença da sociedade, leva a que a apropriação da mais-valia, identificada e explicada por Marx, é, afinal, de todos, deixando de haver exploração); para que fosse possível uma equitativa distribuição dos bens necessários a todos teria de ser ultrapassada a lei da oferta e da procura, estabelecendo uma economia planificada onde a liberdade de circulação impedisse os desequilíbrios resultantes dos movimentos migratórios.
Estabelecidos os princípios da produção, a política deixava de fazer sentido, pois os interesses eram determinados pelo colectivo, ou seja, pela sociedade organizada em sovietes (assembleias de representantes das diferentes associações) que fariam subir até ao mais alto nível a decisão tomada em conjunto.
Num tal sistema a liberdade individual deixava de fazer sentido, pois imperava a liberdade colectiva através do exercício de uma democracia de base. Havia nascido assim uma nova liberdade e uma nova democracia. Teoricamente o partido político funcionaria como simples motor para arranque de todo o sistema, coordenando-o para se chegar ao soviete supremo de onde sairiam as coordenadas para um funcionamento quase perfeito.
A falha do sistema resultou da existência simultânea de três obstáculos: recusa interna da perda da liberdade individual; recusa interna da colectivização das propriedades rurais; coexistência de dois sistemas económicos em confronto: o de mercado (no resto do mundo) e o planificado (na URSS).
Na Itália, Mussolini, na perspectiva de ultrapassar o conflito entre o capital e o trabalho, com recurso ao partido fascista, fundamentou a vida económica no modelo medieval das corporações de ofícios, ou seja, fez recriar a organização do associativismo sindical e patronal sob a tutela exclusiva do Estado, tornando este no grande árbitro dos desentendimentos produtivos e laborais. Para que tal resultasse impôs às partes em confronto um valor mais alto e mais relevante do que o dos simples interesses individuais: impôs o valor do Estado, o mesmo é dizer, o da colectividade. Deste modo, reduziu a nada a disputa política, porque o Estado era omnisciente e, por definição, omnipotente, porque, tendo o poder do colectivo, sabia como e quando se definia e delimitava a vontade de todos.
De novo, apagavam-se, perante o colectivo, a vontade e a liberdade individuais para dar lugar a uma liberdade de todos, exercida através da representação dos dois factores mais importantes da produção, ou seja, de uma nova democracia.
Como creio ter demonstrado, cheguei à explicação da existência de liberdades e de democracias distintas das dos conceitos herdados da Revolução Francesa. O facto de não terem vingado não anula a sua existência, tanto mais que, desde as datas das suas primeiras experiências, se continua, um pouco por todo o mundo, a ensaiar variantes dos paradigmas iniciais, naturalmente, à esquerda e à direita da liberdade e da democracia liberal, também ela, já abastardada relativamente ao modelo do século XIX.