Júlio Dinis
Joaquim Guilherme Gomes Coelho, nasceu no Porto, no ano de 1839, e depois de ter concluído o curso de medicina, na Escola Médico-Cirúrgica da mesma cidade, adoptou o pseudónimo literário de Júlio Dinis.
A sua obra ‒ até há alguns anos considerada lamechas ‒, podemos hoje dizer, foi precursora do realismo ‒ justamente atribuído a Eça de Queirós ‒, pois algumas das suas personagens já estão muito próximas dos contornos desta última corrente literária, enquanto outras mergulham ainda no estilo romântico.
As Pupilas do Senhor Reitor, primeiro romance de Júlio Dinis, surgiu, sob a forma de folhetim, no Jornal do Porto, em 1866, e, no ano seguinte, em livro.
Trata-se de uma história simples de amor, passada numa aldeia do Minho, onde se cruzam todos os ingredientes de uma época: a modernidade, a tradição, a maledicência, a religião, a crendice, o valor do trabalho, a caridade, a soberba, a alegria, a tristeza, a inocência e a esperteza aldeã.
Júlio Dinis morreu em 1871, a poucos meses de completar trinta e dois anos. Matou-o a tuberculose.
Sessenta e quatro anos depois de ter falecido ‒ em 1935 ‒ foi realizado, por Leitão de Barros, o filme homónimo do seu primeiro romance.
Viu-o quando era criança ‒ só me recordava de uma cena ‒ e voltei a vê-lo agora, nesta clausura forçada.
É sobre a fita cinematográfica que vos vou falar; focar-me-ei em razões de época e de natureza política. Talvez assim valha a pena voltar a ver o filme.
O que salta, de imediato, à vista é a preocupação de fazer uma excelente fotografia de paisagem, ocupando muito tempo da duração do filme; depois, vem a excessiva cantoria e as danças regionais minhotas. Mas, o mais aproveitado de acordo com a vigência da ditadura, foi a exaltação da tradição, da religiosidade ‒ demonstrada na obediência popular ao senhor reitor (o pároco local) e na participação nos festejos católicos ‒ e da alegria do viver na aldeia.
Tudo perpassa em imagens, às vezes, desligadas, onde, sem fugir à história de Júlio Dinis, se evidencia o valor de uma vida sadia na aldeia, que hoje achamos pobre e miserável. Mas era dessa aldeia que o Estado Novo fazia a apologia; uma aldeia feliz na pobreza de quase todos e na riqueza de uns poucos. Uma aldeia de gente ignorante, obediente, onde só o médico e o sacerdote tinham letras suficientes para discernir mais longe do que os limites geográficos da pequena urbe. Uma aldeia onde se cantava enquanto se trabalhava e se interrompia o trabalho para dançar.
E todas estas mensagens não são transmitidas tão subliminarmente como se pode imaginar; elas são captadas de imediato, pervagam para o espectador com imensa facilidade e, quase sem querer, perdemos o sentido crítico, passando a admitir a felicidade de uma vida alegre. Nem nos apercebemos ‒ porque começa a ser natural ‒ do tremendo esforço físico do transporte, às costas, das pesadas cestas carregadas de uvas, aquando das vindimas, nos socalcos do Douro. Não damos pela imundice de ruas onde andam à solta galinhas, patos, gansos, cães e gatos. Ruas onde correm crianças descalças e por onde passam cavalos e carros de bois.
Não damos por nada disto, porque o realizador, Leitão de Barros ‒ um defensor do salazarismo ao serviço do qual empenhou a sua vida adulta ‒, se encarregou de nos dar uma imagem idílica, quase paradisíaca, daquela aldeia perdida no Minho.
As Pupilas do Senhor Reitor, escritas num outro contexto e com uma finalidade bem diferente, foram, pela mão de Leitão de Barros, transformadas na cartilha de uma suave ditadura, onde a tradição, a religião e o pátrio poder são realçados, com requintado cuidado para não adulterar o texto de partida, de modo a que o espectador embarque no desejo de viver aquela sociedade ideal.
É mais um filme de um Portugal doce, mas pequenino!