João Ratão
No começo da década de 20 ‒ há cem anos ‒ subiu ao palco uma opereta com o nome João Ratão. Foi uma das poucas representações teatrais sobre a participação de Portugal na Grande Guerra. Tratava-se de uma história simples de amor, intriga, inveja, heroicidade e algumas cantigas. Não nos devemos esquecer de que a sua concepção ocorreu ainda na vigência da 1.ª República.
Em 29 de Abril de 1940, estreou-se, em Lisboa, o filme com o mesmo nome, realizado Jorge Brum do Canto. Já vigorava, então, a ditadura desde 1926 e o salazarismo há uns dez anos (embora tenha assumido a pasta das Finanças em Abril de 1928, Salazar só pelo começo dos anos trinta começou a delinear a teia da sua ditadura).
Por se tratar de uma adaptação de uma obra teatral do tempo da democracia e da liberdade, parece-me, merece o filme ser olhado com a lupa da História de modo a percebermos até onde foi usado, pelo fascismo português, o trabalho de gente republicana e de pensamento livre.
Porque acabei de ver o filme, neste tempo de isolamento, aqui vos deixo a minha perspectiva.
Apercebemo-nos de imediato que a história vai desenrolar-se, uma vez mais, numa aldeia e entre gente remediada. Não é de estranhar o facto, por dois motivos: no final da década de dez do século passado, em plena República, o colectivo social típico era a aldeia e a muito pequena burguesia local; no final da década de quarenta, em pleno Estado Novo, o ambiente conveniente para recolocar a tradição como modelo ideal de comportamento societário, era a aldeia.
Contudo, e curiosamente, para não cortar com o guião original, na aldeia, ao contrário do que seria de esperar, dá-se grande ênfase à figura do regedor ‒ autoridade com capacidade para impor a ordem pública, até, por recurso à detenção em calabouço ‒ e não surge, nem uma só vez, o pároco. Ou seja, o traço primordial da 1.ª República está lá bem vincado no filme, contudo, por ignorância popular, não se estabeleceu ‒ nem se estabelece agora ‒ essa relação tão importante para definir as diferenças de regimes políticos.
Mas há aspectos originais, que foram bem aproveitados pelo realizador em favor do Estado Novo. Por exemplo, o da participação de Portugal na Grande Guerra. Não para elogiar o facto, mas para tirar dele proveito, dando do país uma imagem de heroicidade, exaltando a importância de João Ratão como o herói vindo da frente de batalha. Um soldado gabarola que, afinal, não se gabou do seu acto de coragem de, sob fogo inimigo, salvar o seu tenente.
Aproveitado por Brum do Canto foi, também, uma oposição que, na peça original, deveria ter surgido como um elemento de crítica às tradições populares ainda em tempo de República: a importância da família fidalga e, de entre ela, a figura da velha senhora capaz de mandar os criados chicotear o regedor, por este ‒ mostrando a igualdade republicana ‒ querer oferecer o seu amor àquela viúva. Assim se mostra como, às vezes, a simples exaltação de um episódio pode deformar o sentido de um discurso.
Depois, há a frase dita em tom de verdade irrefutável, que muito aproveitava ‒ e aproveitou quase até ao fim ‒ ao regime de Salazar: «Com a honra de um soldado não se brinca!».
Indo à boleia da ditadura militar, imposta em 28 de Maio de 1926, em 1940, enfatizava-se o Exército, fazendo dele o esteio do regime fascista, oferecendo-lhe honras sem proveito.
João Ratão é um filme que, mesmo com os defeitos próprios de uma vida octogenária, vale a pena ser visto, porque, ‒ tal como procurei exemplificar ‒, mostra várias facetas de um Portugal, que jamais se repetirá e do qual só os muito velhos recordam um pouco.