Injecções nas veias
Um bom e grande amigo tem por hábito elogiar-me a imaginação, porque, julga ele, arranjo sempre assunto para escrever uma pequena crónica neste tempo em que já pouco tenho para fazer além de ler, ver televisão (como eu gosto de um bom filme de guerra, de “suspense”, de humor e de grandes cenas de pancadaria!), dormitar sentado no meu cadeirão e escrever. Ora a verdade é que, muitas vezes, à noite, na cama, antes de adormecer, fico a matutar no tema da crónica do dia seguinte e sucede-me como quando tenho prisão de ventre: não sai merda nenhuma! Foi o caso da noite passada…
Em consequência, aqui estou em frente do meu velho (para a idade relativa destes objectos) computador portátil a espremer as meninges e lá me veio, das entranhas dos também já velhos neurónios, uma ideia. Tentarei dar-lhe forma que possa satisfazer os meus leitores habituais ou de ocasião.
Como já várias vezes disse, o meu pai era enfermeiro da nossa Marinha de Guerra e, como não podia deixar de ser, dava injecções intravenosas ou não. Nas que não, eu não via, pelos motivo que são bem de perceber: é um assunto entre o enfermeiro a agulha e as nádegas do paciente, que pode ser do sexo masculino ou do feminino; das intravenosas fui frequente juiz da habilidade paterna para enfiar a afiada agulha em veias que mal se viam. O meu pai tinha especial paciência para esse efeito, paciência que lhe escasseava para enroscar um parafuso ou pregar um prego. Neste último caso, creio que a habilidade era bem maior para martelar as cabeças dos dedos do que para acertar na cabeça do dito. Nestas ocasiões, era bom não andar por perto, pois alguma coisa podia sobrar para a assistência. Voltemos às seringas e ao garrote para falarmos das injecções intravenosas.
Creio que passei a dar mais atenção a estas formas de combater a doença quando eu próprio, acometido de febre tifóide, com a idade de seis anos, tive de, todos os dias, suportar a picada da agulha (que o meu querido pai jurava sempre ser mais fina do que a da véspera) nas veias dos bracitos, que estendia entre lágrimas por já estar cansado de ser esburacado ora no sangradouro da direita ora no da esquerda. Mas resistia, só para ouvir no final o meu pai dizer ufano: «Este rapaz é forte, é um valente!»
Não sei se foi à custa de escutar tal afirmação tantas vezes ou se me resta alguma costela de herói, o certo é que injecções deixaram de me impressionar… e agora, de quando em vez, lá vai uma espetadela no pulso para apanhar a artéria e analisar o sangue, por isso chamado arterial. Fico impávido e sereno.
Mas em garoto, depois da febre tifóide, muito eu me ria (era melhor do que uma boa cena do “Bucha e Estica” que eu tanto admirava) quando a minha irmã, uma linda morena nos seus quinze, dezasseis e dezassete anos, tinha de levar a picadinha no braço e andava a correr à volta da mesa da casa de jantar, dizendo: «Ai papá, agora não! Deixe-me ganhar coragem!» e o meu pai, com a seringa em punho numa das mãos e na outra a segurar o garrote de borracha, fazendo uma cara de imensa ternura para a sua menina (ai se fosse eu… era logo: «Senta-te aí e fica quieto!»), dizia: «Vá lá Detinha, não custa nada e já sabes que o papá não te magoa». Eu ria, ria quase até às lágrimas. Parecia que à Detinha o nosso pai lhe ia arrancar o coração pelas costas! Hoje é uma velhinha corajosa e cheia de força para suportar todas as dores que tem!
Depois de em criança ter sido mais picado do que uma salsicha antes de ir para a panela, cheguei, no Hospital Militar da Estrela, a tirar sangue sem carecer de garrote, pois eu mesmo apertava o braço e as veias saltavam prontas para a picadela que eu via com indiferença.
Actualmente, garanto-vos, caros leitores, doem muito mais as espetadelas da saudade dos meus tempos de jovem, mas, que remédio, cá continuo a suportar com estoicismo as injecções, agora, com agulha e cateter, para a picada ser só uma!
E, assim, partindo de coisa nenhuma, cá está a crónica do dia.