Henry Kissinger
Quero fazer um aviso prévio: o que vou escrever não é nem comum nem consensual, mas corresponde àquilo que foi, no meu entender, o falecido professor e secretário de estado norte-americano.
No século XVIII, quando a Monarquia francesa absoluta, mas esclarecida, pretendia dominar a política continental e, ao fazê-lo, a colonial, ganhou peso uma expressão bastante comum, que se tornou princípio político, até ao começo do século XX: “razão de estado”.
Diz-se que se deve a Maquiavel esse conceito, todavia, já antes aparecera quando Aristóteles, Cícero, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e outros discutiam o poder absoluto dos reis. A vontade do soberano passar por cima de todos os princípios morais e sociais estava já na “razão de estado”; Nicolau Maquiavel limitou-se a afirmar e clarificar que o poder do príncipe estava para além das leis. No fundo e procurando usar palavras simples, a “razão de estado” é o direito que assiste ao mais forte, tanto no plano interno como no externo, de atropelar as leis e as morais na defesa do Estado ou, o mesmo é dizer, o do seu direito pessoal, se se tratar de um ditador ou o direito de quem detém o poder, no caso de uma democracia, se não houver uma determinante estratégica que defina um destino manifesto para o Estado e para a nação.
Em boa verdade, como quem dita a História é o poder vencedor, não há como deslaçar a “razão de estado” da defesa dos interesses dos Estados. Tal facto justifica que, para a grande maioria das gentes, invocar a “razão de estado” é invocar a defesa de um qualquer colectivo, é ultrapassar limites por causa de um “bem maior”. Depois, por norma, quem faz funcionar a “razão de estado” é um “estadista”.
Dada esta explicação prévia vamos passar ao tema determinante do título.
Morreu o centenário Henry Kissinger, nascido alemão de ascendência judaica e naturalizado cidadão dos EUA por opção e convicção. Morreu um estadista e professor.
Condena-se o comportamento deste político por ter estado na retaguarda de uma série de acontecimentos que levaram à morte milhares de vidas humanas como consequência do seu aconselhamento junto dos presidentes dos EUA. São factos que não se podem negar nem camuflar. Portugal esteve muito próximo de um golpe de estado, em 1975, em tudo semelhante ao que levou o general Pinochet, em 1973, à presidência do Chile. Essa era a vontade de Kissinger.
Na condenação da política interna e externa dos EUA têm prevalecido razões de natureza ideológica: os americanos são a matriz do capitalismo, sistema político condenado, desde o século XIX, pelos pensadores contrários ao direito de exploração da mão-de-obra, quase todos de origem europeia. Nos EUA imperou a liberdade de oportunidades e de enriquecimento fácil, que mais não foi do que uma grande cópia do Reino Unido durante a Revolução Industrial. As duas grandes guerras europeias de 1914-1918 e de 1939-1945 abriram as portas à penetração da vontade de Washington nos grandes mercados comerciais e financeiros de uma Europa que dominava pelo menos metade da Terra. Foi a 2.ª Guerra Mundial que deu maiores perspectivas de levar os EUA a tornarem-se numa potência imperial e mundial. Boa parte dos países da Europa, de várias formas e por diversas razões, acabou tendo de alinhar o seu modelo económico com o dos EUA, embora subordinados ao entendimento que em Washington se faz de democracia. Ora, foi na segunda fase desse período (pós 1950) que Henry Kissinger começou a aperfeiçoar os seus estudos sobre a estratégia, a história e a política de uma maneira bastante diferente da que era comum aos estudantes americanos.
Com efeito, o jovem Henry Kissinger defendera a tese de doutoramento na universidade de Harvard, em 1954, atribuindo-lhe como título “O Mundo Restaurado”. O trabalho do futuro político versava a análise do Congresso de Viena, de 1815, em que, após a derrota de Napoleão, se redefiniram as fronteiras da Europa com base nos chamados limites naturais. Para garantir a paz ficou assente, entre as grandes potências de então, que os Estados deveriam manter exércitos capazes de os defender de vizinhos ambiciosos. Daqui sobressai, imediatamente, um modelo que conduz à “razão de estado” e, por arrastamento, à ideia de estadista.
Por mera dedução pessoal, imagino que em casa, no seio da família, os Kissinger falariam com basta frequência na Europa, na Alemanha e no que se passava durante a guerra. Henry terá crescido nesse ambiente, nessa semi cultura europeia e americana, pois só em 1943 se naturalizou cidadão dos EUA.
Foi, tal como ainda é, na Europa que se delinearam e estabeleceram os modelos políticos que extravasaram para o continente americano, ali sofrendo os efeitos de uma aprendizagem distorcida, porque importada e pouco ou nada vivida pelos cidadãos imigrantes que povoaram os EUA. Ora, não terá sido esse o modelo de aprendizagem do jovem Henry Kissinger. Ele sabia e conhecia o pensamento de Maquiavel, tal como o de Metternich, chanceler austríaco que dominou o Congresso de Viena e soube fugir das ambições russas sobre o império austríaco.
Henry Kissinger foi, na minha opinião, um político europeu que esteve sempre ao serviço dos EUA, trasladando para Washington as mais requintadas e maquiavélicas formas de fazer diplomacia para servir o “seu império” e os “seus imperadores”, defendendo, tal como Metternich, as fronteiras da sua nova pátria, mesmo que à custa da força das armas, pois, quem julga que a diplomacia não recorre ao troar dos canhões, está completamente enganado. Kissinger foi um mestre na estratégia, na política externa e na intriga diplomática. Estudar a obra dele é reencontrar passados que se podem reproduzir em futuros próximos ou distantes assim se saiba ler os reversos dos acontecimentos.