Fases da minha vida – 66
(A ilha de Moçambique)
Numa das minhas deslocações de Nova Freixo a Nampula – uma que incluiu um fim-de-semana – um velho condiscípulo dos Pupilos do Exército e também major da minha especialidade, mais um outro camarada da Força Aérea, desafiaram-me a acompanhá-los numa curta estadia na ilha de Moçambique que eles não conheciam, nem eu.
Lá fomos, muito cedo, estrada fora, num velho carocha, que andava bem e aguentava o caminho. Chegámos à ilha – que já está ligada ao continente por uma ponte – pelo começo da manhã e fiquei absolutamente encantado. E vou explicar a razão.
A ilha tem mais comprimento do que largura. Num dos extremos, talvez o mais largo, fica a velha fortaleza feita de pedra ida de Portugal, com diversos baluartes, tendo capacidade para albergar uma boa guarnição militar. Contígua à fortaleza desenvolve-se a velha cidade de Moçambique com uma ou duas ruas largas e as restantes estreitas. Foi o único local, em Moçambique, que me lembrou a construção quinhentista, com as casas de traça semelhante às de algumas velhas vilas de Portugal.
Ainda se viam os tradicionais riquexós, mas agora parados sem quem os puxasse, dada a proximidade da independência e a imensa carga colonial que tal meio de transporte representava.
Abundavam, também, lojas de paquistaneses – designados, na época e no local, por monhés – onde ainda se vendiam retalhos de tecidos indianos para fazer saris de excelente qualidade e com as mais variadas cores. Compravam-se, também, peças de prata da ourivesaria típica indiana: pulseiras, anéis e colares.
Andando no sentido oposto ao da fortaleza, ainda bem dentro da área da cidade via-se o imponente palácio dos capitães-generais, que visitei, calçando umas sapatas por cima dos sapatos para não desgastar o soalho feito de madeiras preciosas, vindas, creio, do Oriente. Estava recheado com mobiliário indo-europeu de altíssimo valor – que por lá ficou – e vários quadros com os antigos capitães-generais e outras personagens importantes que por ali estanciaram.
Fiquei fortemente impressionado com a visita, especialmente, porque ali, naquele local, senti muito presente Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque e a Índia das especiarias. Ali, sim, estava o Portugal de quinhentos, seiscentos, setecentos, oitocentos e alguma coisa do de novecentos. Ali via-se a Expansão Marítima; ali estava aquilo que, só por maldade, se podia chamar colonialismo português; no resto de Moçambique estava o colonialismo que nos impuseram fazer a partir do final do século XIX.
Frente ao palácio dos capitães-generais ficavam a praia e o longo cais de madeira onde, noutros tempos, atracavam os navios a vapor, que demandavam a ilha. Nessa avenida marginal à praia estava o busto de Camões, que ali estanciou enquanto aguardava dinheiro que lhe pagasse a viagem para Portugal.
Continuando a caminhar no sentido oposto ao da fortaleza, surgia a cidade indígena, com as suas casas feitas de matope e cobertura de colmo. Era por lá que se encontravam as figuras femininas típicas da ilha: as mulheres com o rosto coberto de uma massa branca, mais parecendo cal. Só tinha visto em fotografia.
Fomos, depois, a um mercado indígena, onde comprei mais de sete ou oito pulseiras de latão com formatos originais. Não trouxe duas iguais!
Estafados de um dia sempre a andar de um lado para o outro, só interrompido pelo almoço de marisco, fomos pernoitar numa povoação fronteira, no continente, nas instalações de um quartel do Exército, já quase desactivado. Que noite!
Ficámos os três numa camarata, que devia ter sido de sargentos, com cerca de dez camas de ferro, mas só as que nos eram precisas tinham lençóis. A que me calhou, embora feita, o lençol de cima tinha um imenso buraco a meio, coisa que não seria importante se na camarata não pululassem centenas de mosquitos que me atacaram em voo picado, ainda que coberto, dos pés à cabeça, pelo esburacado lençol. Foi, com inteligência, pelo buraco que os anófeles me sugaram o sangue e inocularam o paludismo, que meses mais tarde se manifestou.
No dia seguinte, domingo, ainda utilizámos a manhã para dar uma volta pela ilha e, depois, rodámos direito a Nampula onde chegámos já quase noite. No quarto da messe, sem mosquitos e sem incómodos, percebi como era pobre estar em Moçambique e nunca ter visitado a ilha que deu o nome à colónia, porque, afinal, perceber-se-ia, que aquele território só teve interesse, durante séculos, para, por um lado, apoiar a rota da Índia e, por outro, penetrar, através do rio Zambeze, até Tete e, dali, até ao reino do Monomotapa onde havia ricas minas de ouro.
Nova Freixo esperava-me, na segunda-feira, para continuar a faina da desactivação do conselho administrativo, deixando para os Moçambicanos aquilo que lhes pertencia por direito de nascimento e naturalidade.