Fases da minha vida – 65
(Em Nova Freixo)
Na sequência do auto de averiguações feito aos oficiais do BCP-31 e da conversa tida com o major Sacramento Gomes, já relatada antes, recebi guia de marcha para o Aeródromo Base n.º 6, situado em Nova Freixo, talvez por meados do mês de Outubro de 1974.
Primeiro, fui apresentar-me em Nampula onde pernoitei para, no dia seguinte, ser transportado, em DO, para a minha nova unidade. Ia somente proceder à desactivação do conselho administrativo. Supostamente retiraria com os últimos militares da restante guarnição da unidade, contudo, admitia encontrar na unidade um oficial com graduação superior à minha – capitão – que acompanhasse o processo até ao fim, isto é, até à retirada e entrega das instalações aos responsáveis da FRELIMO.
Ora, o que aconteceu foi que, na tarde da minha chegada à unidade, o tenente-coronel piloto-aviador Marinho Falcão, que a comandava, retirou-se para Nampula e fiquei sendo, de três capitães, o capitão mais antigo – um era da minha especialidade e chefiava a contabilidade, outro era médico –, o responsável pela unidade, apoiado em mais cinco ou seis tenentes de diversas especialidades e alguns sargentos, sendo um deles piloto do DO estacionado na placa.
Encontrei uma unidade com infra-estruturas modernas e novas: duas excelentes piscinas, alojamentos de boa qualidade, uma bonita capela, uma pista magnífica, uma boa torre de controlo aéreo, edifícios bem construídos e, até, um original monumento ao esforço do Homem para Voar (o chamado Tirem-me daqui).
O clube de oficiais tinha uma curiosa carga de ineditismo, imitando, em tamanho grande e com bons materiais, uma palhota indígena. A ampla cozinha para confecção do rancho, estava dotada de electrodomésticos deteriorados e incapazes de funcionar, porque, numa atitude mesquinha e impensável, contrariando as ordens recebidas de Lisboa, haviam retirado os novos e modernos utensílios há pouco montados, voltando a colocar lá os anteriores. Comecei a aperceber-me, no concreto, de quanto era reaccionária a Força Aérea como instituição.
Do ponto de vista administrativo não foi difícil determinar como fazer a liquidação, pois optámos por verificar que os anos anteriores a 1974 já estavam encerrados e liquidados, restando o que se encontrava em curso. Guardámos todos os livros de contabilidade desde a criação da unidade e, depois de mandar abrir uma grande vala num terreno baldio, para lá foi atirada a documentação – facturas, recibos e requisições – ficando de fora os copiadores de correspondência. Depois de deitado fora tudo o que deveria ir fora, regou-se com combustível de avião e pegou-se fogo aos papéis. Tapou-se a vala e passámos à fase seguinte.
Ocupámos nesta operação umas duas ou três semanas. Havia, depois, que armazenar de forma a poder ser transportado para Portugal, por via aérea ou marítima, todos os documentos que sobraram na selecção feita. De seguida, foi a minha vez de, servindo-me do sargento piloto e das aeronaves disponíveis (foi quando voei num Cherokee oferecido à Força Aérea pelo Governo da África do Sul), transportar para Nampula as numerosas caixas do conselho administrativo.
Fiz bastantes horas de voo e, por brincadeira e desfastio, também experimentei pilotar. Conclui que não era a minha mais satisfatória forma de me deslocar. Piloto é piloto e administrador é administrador.
O ambiente entre os oficiais era extraordinário, pois assentava na mais completa camaradagem. Os tenentes tinham diversas especialidades e diferentes idades, mas os sargentos eram bem mais jovens.
Dada a falta de cozinhas e de cozinheiros, os oficiais por um lado e os sargentos por outro, tratavam de confeccionar, as refeições, essencialmente de carne. Para a termos fresca era necessário ir à caça.
Nunca fui caçador e usei mais vezes as armas de guerra do que as caçadeiras vulgares (a primeira vez que apontei uma, para fazer tiro aos pratos, já alferes, declarei que estava incompleta por lhe faltar parte do aparelho de pontaria!), mas, em Nova Freixo fui convidado para ir, de noite e com farolim, à caça. Não tinha arma e, no jeep, era um mero espectador. Os moços novos, sargentos, atiravam mal que fartava! Um deles, a dada altura, por delicadeza, perguntou-me se queria disparar. Só pedi que me explicassem como percebiam que havia uma peça de caça – coelho ou outro animal comestível – e disseram-me para não me preocupar, pois na altura certa dir-me-iam.
Chegado o momento, segredaram-me:
— Ali está um coelho.
Atentei e vi duas brasas a brilhar na escuridão. Meti a arma à cara, fiz como tinha aprendido anos antes, e disparei. Os olhos deram um salto e o animal caiu morto.
Fui brindado com frases simpáticas. Obrigaram-me a continuar com a espingarda e, verdade seja, pus no jeep uns sete ou oito coelhos. Em dado momento sussurraram-me que tinha na frente da viatura, uma gazela. Mas não lhe via os olhos nem por nada. Só distinguia uma espécie de ferradura grande de cor branca. Para mim, aquilo não era bicho nenhum. Aproximaram-se mais e mais, até que a ferradura deu um salto e desapareceu. A gazela estava virada de rabo para o jeep. Nunca tinha visto uma gazela de tão perto e nem sabia que tinha uma pelagem com aquele tipo de sinal. Perderam-se umas excelentes refeições. Comemos coelho por vários dias. Nunca mais tornei a caçar.
Ir à cidade de Nova Freixo era uma verdadeira desilusão para quem, como eu, estava habituado à cidade da Beira.
A maioria das ruas não eram alcatroadas, não tinham passeios, mas possuíam candeeiros altos que, de noite, dava a ideia de um aglomerado urbano de dimensões consideráveis. As casas eram uma aqui e outra lá longe. Havia uma poeira no ar que se entranhava por baixo das pálpebras e nos deixava os olhos vermelhos. Salvo erro, só existia um café digno desse nome, numa esquina com uma esplanada miserável.
Em dois meses de permanência no aeródromo, só fui à cidade duas vezes. A estada na unidade era muitíssimo mais agradável, mais civilizada.
Já não me recordo como nem porquê, ofereceram-me um grande cristal de quartzo cor-de-rosa, que trouxe para Lisboa e ficou algures por aí, numa das minhas várias mudanças.
Estava quase a chegar a data em que devíamos retirar de Nova Freixo. Fui avisado da visita de um comandante da FRELIMO – aquele que iria receber e comandar a unidade – com o seu estado-maior, para tomar contacto com as instalações.
Preparámo-nos para os receber amigavelmente.
No dia aprazado chegaram os guerrilheiros, desarmados, e iniciámos a volta pelas instalações. O comandante era um homem entre os trinta e muitos anos, próximo dos quarenta, mas os elementos do seu estado-maior – três ou quatro – eram bem mais novos, todos na casa dos vinte anos.
Um desses acercou-se de mim e foi-me fazendo perguntas sobre os requisitos necessários para ser piloto aviador. Pretendi saber mais sobre ele e disse-me que tinha ido para a FRELIMO, havia alguns anos, na esperança de poder seguir o seu sonho, mas que o partido concluíra que ele era mais conveniente como professor do que como guerrilheiro e fora assim que, depois de fazer estudos apropriados – os do liceu com programas semelhantes aos de Portugal – ficara nas bases a ensinar crianças a ler, escrever e falar com correcção a língua portuguesa.
Em dado momento viu um invólucro metálico de grandes dimensões e perguntou-me o que era. Expliquei tratar-se do suporte onde era metido o líquido vulgar-me designado por napalm. Ficou muito excitado e chamou a atenção do chefe da delegação. Este parou, olhou-o com ar frio e cortante e disse, puxando a calça para cima de modo a deixar à vista uma longa cicatriz de queimadura profunda:
— Conheço bem os efeitos do napalm.
Houve silêncio na pequena comitiva e eu senti o incómodo semelhante ao da criança que é apanhada em falta pelo adulto.
Poucas semanas mais tarde, já no final do mês de Novembro, foi recebida a ordem para abandonar, em certo dia que já não lembro, as instalações. Veio um Dakota buscar o pessoal, que ainda se mantinha em serviço, e toda a carga.
Na descolagem, comeu quase a pista até conseguir erguer-se para iniciar o voo. Confesso, naqueles segundos, pensei que iríamos acabar em destroços no fim do betão. Houve como que um respirar fundo quando ganhámos altitude. Pela janela vi, uma última vez, o aeródromo, a cidade quase fantasma e tive a sensação de que, afinal, nada valera uma guerra com tantas vidas perdidas, pois teria sido muito mais fácil avançar para a negociação das independências lá muito atrás, nos anos sessenta, mas, ao mesmo tempo, fiquei com uma certeza: estava a ver nascer um novo Estado soberano, e isso era inesquecível, porque aquele voo de Nova Freixo para Nampula, pelo menos, para mim, correspondia a uma pequena nota de rodapé na História de Portugal e na de Moçambique.