Fases da minha vida ‒ 48
(Comando da 1.ª Região Aérea: o presidente)
Ser chefe de contabilidade de uma grande unidade, tal como era, então, o Comando da 1.ª Região Aérea, constituía uma tarefa difícil e requeria muita atenção, pois a acção financeira e logística dividia-se pelo comando propriamente dito, pelo GDACI (Grupo de Detecção Alerta e Condução da Intercepção) ‒ ambos em Monsanto ‒, pelo Aeródromo Base n.º 1 ‒ Aeroporto de Lisboa (velhos barracões do tempo da 2.ª Guerra Mundial) e Figo Maduro (hangares) ‒ e a esquadra de radares de Montejunto. O general comandante, nunca vi; com quem tinha relações mais frequentes ‒ pelo telefone ‒ era com o chefe do estado-maior, coronel piloto-aviador Baião, homem de trato muito difícil.
O conselho administrativo estava instalado nos velhos barracões do AB-1, pegado ao edifício do comando dessa unidade e muito perto do da enfermaria e posto médico. No lado oposto, a uma certa distância, mas em construção de pedra, cimento e tijolo, estava a messe de oficiais.
Aquando da transmissão do cargo, o camarada que substitui ‒ ia novamente para África ‒, fez-me uma série de avisos importantes, nomeadamente sobre o presidente do conselho administrativo, um velho coronel de Administração já na reserva, mas prestando serviço activo para aumentar a pensão até ao limite máximo de idade e de dinheiro. Tratava-se de um beirão, que, creio, ainda em capitão, havia sido julgado, punido e obrigado a repor uma elevada quantia desviado dos cofres do Estado. Desconhecia-lhe este passado. Teria de estar muito atento às manobras do coronel, pois, pelos vistos, tentava golpes de todas as maneiras e feitios.
Fiquei de pé atrás.
Para se compreender o resto, tenho de descrever uma das acções mais importantes do chefe de contabilidade, naquele tempo e no de agora para funções idênticas.
Quando uma subunidade ou serviço pretendia que fosse mandado comprar um qualquer artigo (que não alimentar, porque o processo era outro) ‒ nas lojas ou firmas fornecedoras ‒ fazia uma requisição à esquadra de material e infraestruturas (EMI), a qual, se não tivesse em armazém o artigo requisitado, elaborava o pedido de aquisição, que apresentava no conselho administrativo. Este fazia a ordem de compra sujeitando-a ao chefe de contabilidade para ser devidamente classificada de acordo com as rubricas orçamentais, que suportavam a despesa (pode parecer altamente burocrático o processo, mas havia circuitos de urgência capazes de dar resposta a uma solicitação em menos de meia hora).
Era nesta fase que se iniciava a possível travagem da aquisição pois, para avançar a ordem de compra para o mercado, tinham de se verificar duas condições em simultâneo: haver rubrica orçamentada para suportar a despesa e, caso existisse, haver saldo nos duodécimos já vencidos. Não se podia comprar, comprometendo valores ainda não recebidos da Fazenda Pública.
Como chefe de contabilidade tinha de começar por verificar se todo o processo estava completo para tomar, de acordo com o valor da compra, uma de três decisões: ou classificar e cativar a verba necessária ou proceder a uma consulta ao mercado ou, em última instância, por via do valor da aquisição, mandar fazer um concurso para fornecimento. Nos casos mais vulgares, a ordem de compra seguia para o mercado, depois de rubricada pelo chefe de contabilidade e pelo presidente do conselho administrativo.
Para facilitar, em cada dia, elaboravam-se todas as ordens de compra e eram sujeitas ao chefe de contabilidade ao mesmo tempo (salvaguardado o caso de urgência).
Uma tarde de um dia qualquer, estava a cabimentar as ordens de compra quando topei com uma sem requisição nem entidade requisitante. Propunha-se a aquisição de várias sacas de cimento e várias toneladas de tijolos. Chamei a funcionária responsável pelo circuito de trabalho antes descrito e perguntei-lhe onde estavam as requisições para este material e o justificativo de quem necessitava dele. Ficou muito vermelha, gaguejou e não foi capaz de dizer nada.
Insisti, então já com voz de capitão e chefe. Em tom sumido, respondeu-me:
‒ Foi o senhor coronel quem disse para fazer…
Mandei-a retirar do meu gabinete e, porque deste tinha acesso directo ao do presidente do conselho administrativo, bati à porta e recebi autorização para entrar. Levava na mão a ordem de compra.
‒ Meu coronel, que raio de merda é esta?
Foi assim, sem mais nem menos, que entrei a matar. Tinha de inverter a hierarquia militar, caso contrário ficava na mão do presidente.
O velho coronel titubeou, pigarreou ‒ era asmático ‒ tossiu e disse, com o jeito do menino apanhado a comer o doce do armário:
‒ Não seja assim! Estou a fazer uma casinha e é uma ajuda para a construção.
‒ Não, meu coronel! Coisas destas não se passam enquanto eu for o chefe da contabilidade deste conselho. O senhor devia ter vergonha de ser apanhado por um capitão e de dar a saber, a uma funcionária civil, que anda a fazer falcatruas com os dinheiros do Estado! Rasguei a ordem de compra e deixei-lha na secretária.
Tive pena do homem e do ar acabrunhado com que ficou. Nunca mais me tentou aldrabar e eu também nunca voltei ao assunto. Foi como se não tivesse existido.