Fases da minha vida ‒ 46
(Na verificação de contas)
Na DSIC havia uma secção que absorvia nove ou dez oficiais: a verificação de contas. Por lá passavam todos os meses as contas com as despesas e receitas de todas as unidades da Força Aérea do continente e dos Açores. Foi no ano de 1971 ‒ não recordo a data precisa ‒ que recebi ordem para abandonar a chefia da secção de subvenção de família e passar para a de verificação de contas, cujo chefe era um major oriundo de miliciano, incompetente, pedante e, acima de tudo, sabujo. O homem sabia pouco de tudo, mas tinha a particularidade de se rodear de colaboradores com conhecimentos seguros e, através do trabalho deles, chamar a si os louros passíveis de receber. Podia contar histórias bem elucidativas do seu carácter. Chegou a brigadeiro (major-general).
Foi com pena que abandonei o cargo anterior, mas a decisão que determinou a transferência foi consequência da grande autonomia que quis introduzir na minha chefia. Usando uma linguagem de hoje, começou a constar que eu andaria em roda livre, comportando-me muito para além das liberdades que eram inerentes à minha graduação: capitão recente. Os meus comportamentos teriam de gerar anticorpos na hierarquia.
Na nova secção, embora sendo capitão, porque mais moderno que um outro, oriundo de miliciano, o meu trabalho era, em tudo, semelhante ao dos alferes e tenente milicianos ali colocados: verificar as contas, somando colunas infindáveis de números e procurando se as despesas estavam bem feitas de acordo com as respectivas rubricas orçamentais, bem como se havia discrepâncias entre a soma das facturas e os respectivos recibos. Em suma, era um trabalho que já havia feito, anos antes, em Lourenço Marques, logo após a minha apresentação na DDSIC.
Na grande sala onde trabalhávamos em secretárias umas por trás das outras, formando duas filas, só uma estava virada ao contrário, permitindo ao seu ocupante vigiar o trabalho dos restantes: era a do capitão mais antigo.
Trabalho monótono, silencioso, cansativo, obrigava a que, ao cabo de algumas horas, fizéssemos intervalos, aproveitando para encetar conversas sobre diversos assuntos.
Estavam por lá quatro alferes milicianos, estudantes do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (actual ISEG), significativamente politizados à esquerda. Nesses momentos de pausa, aproveitavam para deixar escapar alguma doutrinação que, para mim, já com leituras feitas nos domínios da ciência política, eram identificáveis na sua matriz marxista. A porta de entrada na política era fácil de encontrar através de comentar os diálogos e as discussões provocadas pelos deputados da Ala Liberal na Assembleia Nacional (designação do Parlamento no tempo do fascismo). Criticavam-se os ultras e, também, o monolitismo de Salazar, aceitando como plataforma de entendimento mínimo a abertura de Marcelo Caetano; dali passava-se à crítica do sistema.
As conversas eram acaloradas, durando, às vezes, mais tempo do que o conveniente. O capitão vigilante movimentava-se na cadeira, olhava para nós, para mim, e soprava quase imperceptivelmente. Jamais se ausentou da sala durante estes diálogos escutados de fio a pavio com toda a atenção. A inexperiência dos alferes e do tenente levava-os a sentirem-se seguros, contudo, porque mais velho, mais conhecedor do meio, eu desconfiei. Atrás da desconfiança veio uma certeza: tinha de desmascarar o capitão. Mas teria de ser de uma forma desconcertante, que o levasse a mostrar jogo.
Certa tarde, na pausa costumeira, iniciou-se a conversa habitual e eu, ao contrário de alimentá-la com mais dados e mais argumentos, comecei a opor-me ao que se estava a afirmar, contrariando os alferes, que me olhavam espantados e diziam, quando podiam:
‒ Mas, senhor capitão, ainda ontem…
Até que, bruscamente, interrompi e, fazendo voz exaltada, disse qualquer coisa à volta do que escrevo de memória:
‒ Pois olhem, não concordo nada com o que estão para aí a dizer! Acho incrível que ponham as questões nesse pé. Para mim, se governasse, mandava substituir a estátua do marquês de Pombal e em seu lugar punha a de Salazar, um grande político e um grande estadista!
Gerou-se silêncio na sala. Os alferes olharam para mim com ar de espanto sem perceberem se eu tinha enlouquecido ou se estava a gozar. Mas o meu semblante fechado, tal e qual como me habituara a fazer, nos meus anos de Pupilos e de Academia Militar, quando estava a praxar, levou-os a acreditar nas minhas palavras. Trocaram olhares entre si e embrenharam-se no trabalho.
Ao cabo de dez minutos o capitão vigilante levantou-se passou pela minha secretária e, baixinho, pediu-me para ir ter com ele a um dos gabinetes contíguos.
Um ou dois minutos depois, levantei-me e lá fui. Fechou a porta e disse a frase que jamais esqueci:
‒ Fraga, fez muito bem em destacar-se dos alferes. Eu sou o oficial de segurança da Direcção (eu desconhecia) e passam-me pelas mãos os relatórios sobre o pessoal. Os alferes são todos politicamente suspeitos (designação usada, na época, para identificar os militares que não ofereciam confiança ao regime, o mesmo é dizer à PIDE/DGS) e basta que ponham o pé em ramo verde e vão parar ou a África ou ao presídio militar.
Olhei para ele e disse-lhe, porque não nos tuteávamos:
‒ Obrigado pelo aviso, meu caro F. Tomarei cautela e providências.
Saí e fui até ao bar beber um café.
Na hora de fim do serviço, sorrateiramente, disse a um dos alferes para se encontrar comigo num café distante da zona.
Meia hora depois, vestido à paisana, como era evidente, estava no café à espera do alferes.
Ao sentar-se à minha mesa estava com um ar comprometido. Expliquei-lhe, em poucas palavras a razão da minha tomada de posição e ele, com um sorriso nos lábios disse-me:
‒ Pensámos que tinha ficado louco ou que nos tinha andado a enganar todo este tempo.
Em seguida, contei-lhe a conversa com o capitão e todas as suspeitas que pendiam sobre eles. Avisei-os que as nossas conversas políticas tinham de passar a ter lugar fora do serviço. Agradeceu-me. Saímos e fomos para nossas casas.
Dias mais tarde convidaram-me, para assistir à primeira conferência feita na clandestinidade, numa cooperativa, que havia recebido ordem para encerrar as portas. Era mesmo na entrada para a praça Marquês de Pombal. Fui e gostei.
Mas eu já não era um oficial de confiança. A minha situação na DSIC não estava segura e, se calhar, numa estratégia de separar o que devia ser separado, fui mandado apresentar no Comando da 1.ª Região Aérea, em Monsanto, para assumir o cargo de chefe de contabilidade nas instalações que estavam na área do aeroporto de Lisboa, no, então, Aeródromo-Base n.º 1.