Fases da minha vida ‒ 45
(Subserviências e favores)
Na secção de subvenção de família, que chefiava desde Fevereiro de 1969, aprendi a importância de saber lidar com jovens de idades compreendidas entre os dezoito e os vinte três anos. Jovens protegidos por alguém da hierarquia da Força Aérea ou mesmo do aparelho do Estado. Para não perder a mão sobre eles havia que desenvolver um tipo de liderança que lhes fosse agradável, sem deixar de ser responsável, fazendo-lhes sentir o peso do dever. Mostrar-lhes que eu era importante para eles e eles importantes para mim e para as contas que tinha de prestar superiormente.
Consegui, realmente, ao fim de alguns meses, conquistar o meu pessoal. Acho que fiz escola, pois, muitos anos mais tarde, alguns deles confessaram-me a admiração pela minha liderança democrática onde, a par da liberdade, havia o sentido da responsabilidade.
Porque, até ao ano de 1971, não tive nenhum oficial a coadjuvar-me, procurei detectar no meio daqueles pseudo operários das Oficinas Gerais de Material Aeronáutico (OGMA), um que fosse completamente aceite pelos restantes e tivesse sobre eles o ascendente necessário para ser a correia de transmissão entre mim e todos os outros. Informalmente o CL passou a ser o meu adjunto. Tomava algumas decisões sobre áreas previamente definidas por mim, nomeadamente a centralização dos pedidos e reclamações do pessoal. Assim, a última instância sobre eles era eu, que assumia, perante os meus chefes, a responsabilidade de tudo.
Talvez, ainda, em 1969 ou início de 1970, num dia que já não recordo, fui chamado ao gabinete do subdirector ‒ coisa rara nessa altura, pois ainda não havia sido chefe da secretaria e o coronel não era aquele já por mim referido lá para trás ‒ ordem que cumpri de imediato.
Ao entrar no gabinete dou de caras com um jovem guedelhudo ‒ cabelo farto a bater-lhe pelos ombros ‒ alto, com casaco grená de bombazina, ar simpático, desportivo e um sorriso nos lábios.
‒ Faça favor, meu coronel.
‒ Olhe, Fraga, apresento-lhe o ZN, filho do comandante N que vem trabalhar para a sua secção.
Contive-me, a muito custo. Então era chamado ao gabinete do subdirector da DISIC, para receber um funcionário civil, guedelhudo, e protegido das altas esferas? Era mais um!
Nunca tinha ouvido falar no comandante N, nem me preocupava muito com isso. Mas que ali havia merda, lá isso havia!
No elevador não troquei palavra com o indígena, nem o olhei de frente. Chegado ao meu gabinete chamei o civil que me servia de adjunto e dei-lhe as indicações necessárias para pôr a trabalhar o artista e que não me chateasse nos próximos tempos.
Procurei averiguar quem era esse tal comandante N e fiquei a saber que só se tratava de um antigo oficial de Marinha, que se separara, havia muito tempo, da vida militar, e, na altura, possuía uma empresa que, junto de França, comprava os helicópteros e os aviões para a Força Aérea Portuguesa!
Continuei a não querer conversas com a criatura até que, talvez ao cabo de várias semanas ‒ e não foram poucas ‒ o civil meu adjunto informou-me que o guedelhudo já estava a trabalhar e era um bom funcionário. Com algum receio, tentou saber o motivo do meu voto ao ostracismo da criatura. Expliquei-lhe a minha relutância e ele, apaziguador e com sentido diplomático, fez a defesa do recém-chegado… Era só aparência, porque queria trabalhar como todos os restantes!
Alguns dias depois, mandei-o chamar ao gabinete e comecei por lhe dizer:
‒ Não estou habituado a receber e transportar os meus funcionários! Não gostei da atitude do subdirector e não espere tratamento especial!
Com simpatia no rosto explicou-me que também ele não gostava daquele tratamento, que já acontecera antes num banco onde trabalhara, e não contava com nenhuma benesse, por ser filho de quem era.
Com o rodar dos meses conclui que era um excelente funcionário, uma simpatia, disponível para todos os serviços e pretendia afirmar-se pelo seu valor e não queria viver à sombra do papá. Ficámos bons amigos.
Muitas vezes, é o proteccionismo dos pais, quem estraga os filhos e lhes macula o futuro.
Como já disse, morava, nesses anos da década de 70 do século XX, na rua da Verónica, mesmo em frente do liceu Gil Vicente. Por regra, desde sempre, sempre liguei pouca importância aos vizinhos próximos ‒ do prédio ou da rua ‒ e, por isso, sem quebra de boa educação, não lhes fixo a cara. Ultrapassada esta introdução, regressemos à secção de subvenção de família na DSIC.
Pela passagem à disponibilidade de um dos cabos amanuenses surgiu lá um outro, bem parecido e com declarado desejo de ser engraçado, tipo malandreco de Lisboa, embora vivesse no Barreiro.
Poucos dias depois de se ter apresentado já fazia constar que era primo do juiz delegado do Ministério Público no tribunal plenário, chamado da Boa-Hora, em Lisboa. Tratava-se, quase de certeza, da mais sinistra figura daquele famigerado tribunal; era, em última instância, o magistrado que dava cobertura à acusação da PIDE/DGS.
Ao cabo de um mês ou dois de por lá andar o cabo C ‒ o primo do juiz ‒ recebi, em casa, numa noite, o telefonema do juiz CS que me tratou com todos os salamaleques e fez-me saber que éramos vizinhos, pois morava no prédio exactamente ao lado do meu. Pediu-me para o receber em casa. Que viesse.
Depois das formalidades sociais habituais ‒ era talvez dez anos mais velho do que eu ‒ deu-se a conhecer como primo do cabo amanuense C, que, sendo casado e com um filho muito pequeno, tinha sérias dificuldades financeiras, pelo que ele, juiz, lhe arranjara emprego numa muito conhecida empresa de construção civil, onde trabalhava de manhã para angariar um pouco mais de dinheiro. Em face de uma situação tão precária, vinha pedir-me se o poderia dispensar uma semana, em cada mês, para angariar mais ordenado na empresa.
Estava ali, pensei, a minha oportunidade de ouro!
Depois de lhe ter manifestado estranheza pelo pedido que me fazia, afirmei, textualmente, «espanta-me o sentido de equidade de um magistrado, por não ver quanto injusto eu estaria a ser para com os outros três cabos sob as minhas ordens, se acedesse ao seu desejo».
Acho que ele esperava tudo, menos esta resposta. Hesitou, gaguejou, vacilou e, depois de o ver bem encostado às cordas, respondi-lhe:
‒ Deixe-me pensar no assunto, para encontrar uma solução justa para toda a gente.
Desfez-se em agradecimentos, enquanto acabava de beber o copo de uísque que lhe havia servido, e, com cumprimentos exagerados, regressou ao seu apartamento no prédio contíguo.
No dia seguinte, no serviço, chamei o cabo C e dei-lhe um tremendo raspanete, acabando a perguntar-lhe se ele achava justo para os camaradas os benefícios que pretendia exclusivos para si. Não foi capaz de me responder.
Fui à sala grande onde todos trabalhavam e contei, com alguns pormenores, o pedido que me havia sido feito pelo juiz, primo do cabo C. Depois, recordei-lhes que os civis ganhavam oitenta escudos por dia e os cabos oitenta escudos por mês.
Chamei ao meu gabinete o civil meu adjunto e expus-lhe o meu projecto, que se resumia ao seguinte: como cada mês tem quatro semanas em cada uma estava dispensado, por mim e à minha exclusiva responsabilidade, um cabo, desde que os civis e os cabos restantes garantissem o trabalho do dispensado e não houvesse atrasos de qualquer espécie. Ele que se reunisse com o restante pessoal e apurasse se havia concordância, pois bastava um não aceitar e nada disto se faria.
Meia hora depois regressou ao meu gabinete e disse-me que havia unanimidade de votos.
Quando o juiz CS me telefonou a agradecer, tive oportunidade de lhe dizer que, para mim, a justiça é sempre equitativa e sem favores especiais. Acabou por se tornar visita regular de minha casa, embora sabendo quanto eu não concordava com o regime. Isso será motivo para, mais à frente, voltar a esta estranha figura.