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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

19.07.20

Fases da minha vida ‒ 43

(A primavera marcelista: impressões)


Luís Alves de Fraga

 

Para se conseguir explicar certas situações temos, por vezes, de nos socorrer de exemplos aparentemente sem sentido. Hoje, começo dessa maneira.

 

Imagine o leitor que é um passarito daqueles canoros que se prendem numa gaiola com liberdade bastante limitada. Imagine que, ao fim de muito tempo ‒ meses ou anos ‒ o dono do passarito leva-o e à gaiola para uma pequena divisão da casa, sem janelas e com uma porta minúscula. Leva-o e abre-lhe a portinhola da gaiola. E o leitor, habituado ao limitado espaço da sua prisão, nem quer acreditar que, agora, pode voar muito mais, muito mais… na limitação da pequena divisão da casa. E, desse modo, tem de agradecer ao seu dono. Agradecer e, de certa maneira, sentir um profundo reconhecimento, até porque ele, na limitada divisão, colocou mais poleiros, mais alpista, música e vem diversas vezes ao dia visitá-lo para conversar consigo. Que dono maravilhoso!

O leitor vai demorar algum tempo a perceber que a única coisa feita pelo seu dono foi alargar-lhe a gaiola e criar-lhe ilusões!

Chega de dar largas à imaginação.

A primavera marcelista foi, mutatis mutandis, o exemplo do passarito na gaiola!

 

Passo a explicar.

Salazar, nas estórias contadas em voz baixa nos cafés de Lisboa, era conhecido pelo senhor Esteves, por um simples motivo: nunca se anunciava a ida dele a qualquer lado; noticiava-se a sua pretérita estadia em algum sítio! Vivia fechado no palacete de S. Bento (depois do atentado de que, por mero acaso, saiu vivo), rodeado pela governanta, as criadas ‒ como se dizia na época ‒ e um ou outro ministro a quem mandava chamar ou que o procurava para obter concordância com algum aspecto duvidoso. Salazar era uma sombra. Quando falava em público usava uma linguagem de cátedra servida por uma construção gramatical correcta, mas ultrapassada.

Caiu da cadeira e foi substituído por um professor da Faculdade de Direito, que usava a seguinte expressão para incentivar a criatividade dos seus alunos: «Os senhores podem dar as definições que quiserem, desde que digam exactamente o mesmo que as minhas».

Um verdadeiro democrata no exercício da sua função docente!

 

Quando assentei arraiais, em Fevereiro de 1969, vindo de Moçambique, Marcelo Caetano levava uns meses de governação e, nesse tempo, já tinha conseguido que os passaritos, que éramos, nos sentíssemos livres no quartito transformado em nova gaiola.

‒ Como é que o fez?

Muito simples: mudou as moscas! E nós nem demos por isso…

Num país onde o governante durante dezenas de anos raramente aparecia para se deixar ver em público, Marcelo Caetano, de quando em quando, passa a ir aos estúdios da televisão e tem uma conversa ‒ por acaso era um monólogo ‒ em família. Isto é, dá-nos importância! Uma importância estabelecida por ele, mas que era muita para quem não a tinha há muitos anos ou nem sequer a havia conhecido, como foi o caso da minha geração. Parecia-nos que vinha prestar contas à nação!

 

Uma das primeiras mudanças mais evidentes, que marcaram a primavera foi a alteração do nome do célebre elemento de repressão do Estado Novo, a PIDE (Polícia de Internacional e de Defesa do Estado), para DGS (Direcção Geral de Segurança). Uma outra foi a mudança da designação do partido único ‒ União Nacional ‒ para Acção Nacional Popular. Tratava-se de uma declarada tentativa de converter o partido de apoio de Salazar num esteio à sua própria pessoa. Esqueceu, no entanto, que o saudosismo pelo chefe anterior ia perdurar para além dos tempos. Na verdade, foram mudanças de nomes. Tudo o mais se manteve, nesta operação de maquilhagem da velha ditadura fascista.

Não tão imediatamente evidente foi o abaixamento do nível da censura prévia. Nos jornais, nos filmes e nas peças de teatro sentiu-se uma nova liberdade, que, dito de outra maneira, não era liberdade, mas menor prisão. Podiam-se abordar temas até então impossíveis de debater. Eram questões, realmente, menores, todavia, na altura, surgiram-nos como maiores.

Foi gozando dessa pequena abertura censória que algumas editoras arriscaram a publicação de livros quase impossíveis de verem a luz do dia em tempos de Salazar. Talvez a chancela que mais se destacou pela ousadia tenha sido a Dom Quixote, com a Snu Abecassis à frente. Ao olhar o catálogo do começo dos anos 70 do século passado temos uma visão completamente nova das traduções surgidas. E fez mais, para prevenir as apreensões, tão vulgares anos antes: começou a publicar através do sistema de subscrição, nomeadamente os livros da colecção Cadernos Dom Quixote, remetidos para casa em encomenda postal. Muitos, quase de seguida, foram proibidos. Mas eu tive-os todos!

 

Seguiram-se aos livros alguns jornais, dos quais recordo o Comércio do Funchal e o Jornal do Fundão. Qualquer deles tornou-se referência para quem não concordava com a ditadura. Em Janeiro de 1973, surgiu o jornal Expresso que, na grande imprensa, constituiu uma lufada de ar fresco, por causa da ousadia dos temas tratados. Nas revistas, recordo a Vida Mundial, dirigida pelo democrata e combatente antifascista Carlos Ferrão.

 

Todavia, a marca da primavera marcelista foi-nos dada pela integração de cerca de trinta novos deputados na Assembleia Nacional, que procuraram fugir à passividade bovina do suposto Parlamento da ditadura. Chamaram-lhe Ala Liberal.

Foram figuras de topo desse movimento renovador ‒ porque é importante perceber que estes liberais não punham, nem puseram, em causa o modelo corporativo/fascista do Estado Novo e, por isso, não foram nem oposição nem antecessores do PPD/PSD, como agora se quer fazer crer ‒ Francisco Sá-Carneiro, Francisco Pinto Balsemão, Miller Guerra, Mota Amaral, Magalhães Mota e Pinto Leite, entre outros de menor destaque.

Para se perceber o que foi a Ala Liberal tem de se tomar boa conta num aspecto básico: nunca esteve nos objectivos destes políticos, nessa altura ainda jovens, uma mudança do modelo de governação; o que os animava não era a contestação da estrutura, mas os métodos usados para sustentá-la. Assim, estavam em causa as prisões e os maus tratos e jamais a polícia política; o rigor da censura e jamais o fim da mesma; as condições como se fazia a guerra e jamais a própria razão do estado de guerra.

Evidentemente, este movimento dito liberal tinha de produzir efeitos tanto à direita como à esquerda. À direita, porque obrigou a um endurecimento dos defensores do antigamente, à frente dos quais, na Assembleia Nacional, estavam Casal Ribeiro e Henrique Tenreiro, que, até aos últimos dias do regime, se bateram pelo refortalecimento das posições do Governo contra a contestação dos liberais. À esquerda, comprovou a incapacidade do fascismo português se reformar, caminhando para uma solução democrática. Foi daqui que surgiu a convicção, que se espalhou às Forças Armadas, da necessidade de derrubar pelas armas a caduca ditadura.

 

O quadro que acabo de traçar não é fruto de uma posterior análise da situação; é, digo-o sem receio de falsear seja o que for, o resultado daquilo que fui sintetizando entre Fevereiro de 1969 e Fevereiro de 1973. Nesta última data eu já pensava assim, embora não pudesse ser tão claro como acabo de ser.

Mais à frente, vou explicar como cheguei a esta visão e compreensão da situação.