Fases da minha vida ‒ 41
(Impressões sobre a universidade)
O ensino universitário em Portugal, até ao fim dos anos 70 do século XX foi, na maioria das vezes, frequentado por jovens provenientes de camadas sociais com amplas ou médias posses financeiras. Assim, entre os estudantes e o regime político salazarista não houve desacordo ou desentendimento, porque o sistema favorecia quer os pais, que pagavam os estudos, quer os filhos, que garantiam, com o diploma, um emprego na panóplia das possibilidades existentes, então, no país.
Houve momentos de sobressalto, até ao ano de 1961, entre os estudantes universitários e os poderes constituídos, mas foram poucos e muito pontuais,.
Era criança e não me recordo, o primeiro desaguisado entre os estudantes universitários e o Estado Novo ocorreu no final da 2.ª Guerra Mundial, quando a oposição, esperançada na queda de Salazar e da ditadura, criou o MUD (Movimento de Unidade Democrática) e o MUD Juvenil. Houve saneamentos de professores, alguns deles bastante consagrados, e de estudantes, que ficaram incapacitados de concluir os cursos.
Durante a década de 50 não tenho memória de ter havido contestação juvenil organizada contra a ditadura. Se existiu foi pontual e muito bem silenciada.
A eclosão da guerra colonial, em Março de 1961, associada ao efeito de borboleta das eleições presidenciais de 1958 ‒ onde o general Humberto Delgado, um homem do regime se rebelou contra o sistema ‒ e da tentativa de golpe palaciano de Abril para solucionar a questão ultramarina, geraram condições para se iniciar uma larga contestação nas universidades portuguesas (só existentes em Lisboa, Coimbra e Porto). Se quisermos ir um pouco mais fundo na análise da revolta estudantil não a podemos dissociar de dois elementos, um de carácter social e outro de natureza política. Vejamo-los.
Socialmente, o acesso ao ensino universitário tornou-se mais possível e mais apetecível a filhos de famílias com rendimentos menos abundantes, aumentado o número de alunos identificados com franjas sociais financeiramente débeis e, por conseguinte, passíveis de compreender os motivos de qualquer contestação.
Politicamente, a dividida oposição ao regime entre democratas liberais e comunistas, no final dos anos 50, deu origem ao surgimento de células partidárias muito agressivas de matriz maoista, lineares na concepção e na ideologia, as quais tomaram de assalto a juventude universitária, combatendo em duas frentes: uma, contra o regime e, outra, contra a tentada hegemonia do Partido Comunista.
Era este o quadro de contestação ‒ aumentado pelos acontecimentos de Maio de 1968, em França ‒ quando, em Outubro de 1969, entrei no ISCSPU.
Preponderava, como figura de proa, no Instituto, o professor Adriano Moreira, antigo ministro do Ultramar. A ele se deviam as reformas feitas nos cursos e, muito especialmente, o leque de cadeiras leccionadas.
Na verdade ‒ confirmado muitos anos depois pelo próprio ‒, Adriano Moreira tinha um sonho para o Instituto: fazer dele a Escola de formação de quadros políticos de Portugal. Não seriam só quadros administrativos para as colónias; seria gente capaz de gerir politicamente um país submetido a uma ditadura corporativa de matriz fascista, mas carecida de funcionários com conhecimentos no âmbito das ciências sociais e das ciências políticas. Qualquer coisa à semelhança de certas escolas de grande gabarito existentes em França. Naturalmente, este sonho era isso mesmo, um sonho, porque, nem em Portugal havia democracia, nem os mestres e, menos ainda, os alunos tinham preparação para alcançarem os níveis gauleses. Contudo, no ISCSPU, leccionavam-se matérias ainda não experimentadas noutros cursos universitários nacionais.
Talvez, exactamente, por pretender ser uma escola de quadros políticos, o ISCSPU tinha um corpo docente onde imperavam alguns dos ultras do regime. Recordo a figura sinistra do professor Silva Cunha. No entanto, albergava cientistas sociais como, por exemplo, o professor Jorge Dias, antropólogo de renome internacional.
Sem dúvida, as aulas que concitavam uma maior assistência eram as do professor Adriano Moreira, não só pela forma como expunha os assuntos, mas pelo conteúdo das mesmas. Sabia separar, dentro dos limites do possível e de acordo com a época ‒ estamos a falar de factos passados há meio século ‒, a posição política do antigo ministro de Salazar da do mestre que procura isenção e, acima de tudo, que se não exime a tratar com carácter científico temas usualmente examinados com elevada carga propagandística e distorções ideológicas. O anfiteatro enchia-se para acompanhar o raciocínio do professor quando expunha o conteúdo da cadeira de Teoria e Ideologias Políticas.
Embora sem brilho, as aulas de Geopolítica, de cuja exposição se encarregava o professor Políbio Valente de Almeida, eram muito frequentadas, por causa da matéria. Realmente, através do estudo das diferentes teorias e escolas geopolíticas, adquire-se uma nova perspectiva das relações políticas entre Estados, regiões e poderes. É uma janela para o passado, mas, acima de tudo, para o futuro.
Depois, a Antropologia Cultural ‒ outra cadeira nova entre nós ‒ constituía um excelente processo para perceber ‒ quem quisesse perceber, está claro ‒ que, na espécie humana, todas as diferenças são só e somente do âmbito cultural. A ela devo a ausência de preconceitos rácicos.
Outras cadeiras inovadoras iam da Sociologia à Ciência Política, incluindo conhecimentos capazes de se tornarem instrumentos para desbloquear o outro lado da ditadura, deixando à mostra a democracia.
Ainda que se usasse, como meio de aquisição de conhecimentos o velhíssimo sistema de apontamentos ou sebentas para responder às questões colocadas pelos professores nos exames, do que mais gostei foi das longas listas bibliográficas fornecidas pelos docentes. Fiz, na minha preparação, aquilo que quase ninguém, na altura, fazia: li a maior parte das obras indicadas. Assim, o meu saber não ficou limitado ao que o docente considerava como essencial; aumentei em muito a minha bagagem intelectual.
Uma nova forma de estudar e de aprender abriu-se-me de par em par. Por outro lado, como era aluno voluntário ‒ em oposição aos ordinários, os que acompanhavam as aulas com regularidade ‒ e não andava na universidade para me integrar num grupo político, todo o movimento estudantil passou-me à margem. Foi, dois anos mais tarde, fora do Instituto, que eu fiz uma grande abertura política e, curiosamente, para que tal se tornasse possível encontrei nas matérias estudadas a melhor das bases para a minha afirmação democrática.