Fases da minha vida ‒ 14
(Ensino académico)
Na Academia Militar, no meu tempo, para se frequentar as armas e os serviços do Exército e o curso de pilotagem aeronáutica tinha de se estar habilitado com as alíneas (designação da época) de ciências físicas e matemáticas, ficando excluídos da carreira militar todos aqueles que tivessem marcada aptidão para as alíneas de letras (incluídas Direito, História e Filosofia). E o fundamento para tal modelo de concurso já começava a não fazer sentido, especialmente no que tocava às chamadas armas: infantaria, cavalaria e artilharia. E não fazia sentido, porque o desenvolvimento tecnológico era já, então, suficientemente avançado, dispensando a necessidade de saber física, química e matemática para fazer evoluir tropas em combate desde o posto de alferes a general. A prova absoluta disto mesmo tivemo-la, em 1973, quando guerrilheiros, na Guiné e Moçambique, sem formação especial, usando uma arma sofisticada ‒ o SAM 7 ‒ derrubaram aeronaves de elevado custo financeiro e grande valor operacional. Só este acontecimento ‒ se nos nossos estados-maiores militares se reflectisse sobre as coisas significativamente importantes ou se deixasse de usar a velha tradição castrense de que é assim, porque sempre foi assim ‒ era suficiente para alterar as exigências literárias de admissão à Academia Militar e, mais tarde, à Academia da Força Aérea, passando a incluir como passíveis de dar excelentes oficias os alunos com formação básica em letras.
Claro que este requisito académico tinha tido a sua razão de ser, muito mais de natureza política do que de âmbito científico. Em duas palavras a explicação é simples.
No ancient regime a nobreza tinha, naturalmente e por direito, lugar imediato no comando de tropas; no século XVIII começaram a surgir as primeiras escolas de formação de oficiais, em especial, para comandar tropas de artilharia e para dirigir trabalhos de construção militar. Era o despertar da cultura burguesa, que se impunha pelo saber e não pelo nascimento. A Revolução Francesa, acabando com a preponderância cultural da aristocracia, acabou circunscrevendo as ciências ditas exactas como fonte de uma nova cultura. Este facto teve imediatos e necessários reflexos na formação dos oficiais do exército na Europa. A Portugal chegou em pleno liberalismo, depois da vitória de D. Pedro, em 1834.
Para além da condição científica, antes referida, acresce que, na Academia Militar, tínhamos de, no primeiro ano lectivo, a par de cadeiras de índole castrense, fazer com aproveitamento as disciplinas do primeiro ano da Faculdade de Ciências: Matemáticas Gerais, Física Geral, Geometria Descritiva e Desenho Rigoroso. Era dose!
Todas eram leccionadas por oficiais do Exército, menos a regência de Geometria Descritiva, que estava entregue a um civil. Acrescentavam-se, depois, duas cadeiras semestrais tipicamente militares (uma delas foi, no meu tempo, a já referida Deontologia).
O facto de serem ministradas por docentes militares evidenciava um aspecto subtil, que, na altura, nos passou despercebido, mas, com o rodar dos anos e a minha própria experiência de vida, se me tornou evidente: a par do conhecimento específico de cada cadeira estava subjacente a análise implícita, devida ao professor, das qualidades castrenses dos cadetes. Isso era tão evidente no meu tempo (como o é ainda agora) que admira não ter sido percepcionado logo de imediato através de um simples facto, que passo a relatar.
Na universidade, um aluno que use de meios pouco ou nada lícitos para provar saber o que não sabe, obtém a classificação de zero e reprova; na Academia Militar, para além dessa imediata consequência, é punido disciplinarmente. Ou seja, fica marcada a sua propensão para a desonestidade (mesmo que natural na comunidade académica nacional) com a possibilidade de ter desfecho futuro no percurso formativo.
Ao longo do curso de três anos e de mais quase dois semestres lectivos de tirocínio (aquisição de experiência prática para o exercício imediato das funções de oficial subalterno ‒ alferes e tenente) os cadetes aprendiam matérias de índole universal e conhecimentos específicos de duas naturezas: os gerais ao oficialato e os particulares da sua arma ou serviço.
Exemplifico: os universais poderiam ser as Matemáticas Gerais; os gerais iam da topografia à estratégia, passando por história militar, fortificações, táctica geral, transmissões, motores, armamento e muitos mais; os particulares variavam entre os necessários às engenharias, à cavalaria, à infantaria, à artilharia e ao serviço de administração militar.
Curiosamente, havia o cuidado de ensinar as bases fundamentais, com acrescentos teóricos, que tornassem a Academia na escola formadora para toda a vida militar e não somente para alcançar determinados postos na hierarquia. Todos os cursos seguintes, para a progressão no oficialato eram acrescentos ao saber, podendo constituir condição de promoção, mas o conhecimento estrutural devia ser adquirido no fim dos anos lectivos do internato na Academia Militar. Assim, ao concluir o curso, eu sabia ler uma carta militar (entenda-se mapa) e perceber onde se situavam as várias unidades constitutivas de uma divisão de infantaria; percebia se estava instalada ofensiva ou defensivamente; se ocupava as linhas de altura ou os vales ou as encostas; sabia os fundamentos da estratégia ‒ a ciência dos generais ‒ e como e quando se devia passar à ofensiva ou à defensiva, distinguindo, no teatro de operações, as diferentes zonas fundamentais para sustentar o empenhamento das tropas em primeiras linhas. Enfim, eu alferes era quase general! Claro que, função do desempenho da actividade diária própria da minha especialidade, na Força Aérea, em poucos anos perdi essa bagagem teórica. Perdi-a eu tal como todos os meus camaradas do Exército e os pilotos-aviadores! Tínhamos muito mais em que pensar e a guerra colonial chamava por nós.