Fases da minha vida ‒ 13
(Formatação ou acção psicológica)
Depois dos cadetes do primeiro ano da Academia Militar estarem capazes de marchar com alguma cagança (pouca, ainda, muito pouca!) e de, parados, fazer as voltas todas do regulamentos ou abrir fileiras ou perfilar pela direita ou alinhar pela frente ou pelos lados, começou a formatação psicológica ‒ tão necessária a quem quer ser militar do quadro permanente ‒ que eu chamaria de acção psicológica.
Nesta fase foi fundamental a atitude do capitão Pedrosa, o Zé d’Adega, a quem me referi anteriormente. Era suficientemente alucinado, com total falta de sentido autocrítico, exagerado em tudo e, por isso, aquilo que deveria ser uma actuação dissimulada, sub-reptícia, disfarçada, para surtir um efeito mais profundo e muito mais marcado e marcante, passou a ser alvo de risadas, de chacota e quase de rejeição.
Na formatura da manhã, após o pequeno-almoço, quando tínhamos de seguir para as aulas, o capitão Pedrosa, fazia-nos recitar ‒ o termo é mesmo este ‒ o Código de Honra do Cadete da Academia Militar.
Não tenho dúvidas quanto ao interesse e valor desse código naquele momento crucial; deveria ser interiorizado por todos os novos alunos, pois era uma peça importantíssima na socialização, que supõe a carreira das armas, sobre a qual se deviam construir todos os esteios necessários à verticalidade e estruturação de quem vai comandar homens em situações extremas e que podem ter de dar e levar a dar a vida em prol de um objectivo nem sempre claro ou compreensível por quem combate.
A forma como era declamado o Código tornava-o ridículo e, por mais repetido que tenha sido, creio, hoje, os cadetes desse tempo, oficiais reformados e velhos, não o devem saber, embora tenham apreendido o seu sentido último. O que devia ser lembrado como chave de uma socialização nova e necessária, perdeu-se lá nas calendas da memória.
Mas houve outras formas, subtis, embora visíveis, de nos entrar na psique. Recordo duas a merecerem tratamento relevante: Mouzinho e a Deontologia Militar.
Vamos a elas.
O curso entrado na Academia Militar em Outubro de 1961 teve como patrono a figura de Mouzinho de Albuquerque. E compreende-se. A guerra colonial tinha começado em Angola e havia que chamar à memória dos cadetes desse ano a reminiscência de um grande capitão de África. Um militar que foi prestigiado no seu tempo por feito julgado quase impossível (devo acrescentar que, para mim, nessa altura da minha vida, ele fulgia lá no topo dos topos como exemplo único de bravura e de capacidade de servir a Pátria; estudos posteriores, análises feitas muito mais tarde com a frieza ‒ quiçá, o cinismo ‒ que os anos dão, levaram-me a perceber como de um militar comum, embora duro e intransigente, se faz um herói, mas isso ficará para depois…). E um patrono assim era uma responsabilidade para quem o tinha!
Mas antes, creio eu, já havia espalhados pelas paredes das camaratas e outros pontos bem pensados, quadros com retratos e transcrições de escritos de Mouzinho. Textos curtos, mas incisivos, e outros mais longos, mas memoráveis. A carta de Mouzinho ao príncipe real D. Luís Filipe, quando foi nomeado, por D. Carlos, aio do suposto futuro Rei de Portugal é o exemplo mais acabado dessa acção psicológica para nos moldar dentro dos quadros mentais do que deve ser um soldado. Dessa, sim, ainda hoje recordo algumas frases ‒ lapidares ‒ que me forjaram o modo de estar na vida e no meio castrense.
A Deontologia Militar, cadeira, creio, semestral, era ministrada pelo capelão da Academia, tenente-coronel licenciado em Direito e sacerdote católico, António dos Reis Rodrigues. Havia quem o designasse por Urubu, mas, indubitavelmente, era um homem superiormente inteligente, sabendo com muita exactidão o que se pretendia dele, enquanto docente daquela disciplina.
Quando nós, cadetes, fazíamos barulho ou conversávamos nas aulas ele interrompia e, com olhar severo, dizia:
‒ Se não respeitam o professor têm de obedecer ao tenente-coronel!
Note-se a força desta frase crua, mas acutilante. Ele integrava, em absoluto, a farda que usava, os galões que lhe conferiam uma autoridade que jamais poderia ser contestada por qualquer um de nós sem que tal fosse indicador de uma total falta de vocação militar. Este homem foi marcante pelos apontamentos da disciplina que regia e à qual tínhamos de dedicar tanta atenção como a todas as outras.
O meu relacionamento com ele, embora ainda dentro do âmbito da prática católica ‒ fui um dos poucos cadetes do meu tempo a aderir ao movimento, do qual ele era responsável no patriarcado de Lisboa, designado por Juventude Universitária Católica (JUC), que abandonei no segundo ano de frequência ‒ foi muito escasso e pouco dialogante.
O volume por onde estudávamos Deontologia Militar ‒ foi há poucos anos que me desfiz dele, estando em depósito na biblioteca dos Pupilos do Exército ‒ é ainda agora um excelente manual onde estão compiladas as ideias fundamentais do comportamento moral, cívico, político e castrense que devem orientar um oficial desde o mais baixo posto até ao mais elevado da hierarquia. Este manual foi estudado por todos nós e, por pouco que tenha ficado guardado na memória, há, em cada um, os resquícios necessários para termos completado a carreira sem ferir em excesso aquilo que era esperado fizéssemos.
Foi com o tenente-coronel António dos Reis Rodrigues que eu ‒ e todos os outros, que a tal tomaram atenção ‒ aprendi ser possível e, até, desejável que as Forças Armadas tomem o poder político quando aqueles que o detém já não representam os legítimos interesses da Nação!
A formatação não se ficava pelo que descrevi; ela era feita ainda mais subtilmente enquanto aprendíamos conhecimentos diversos.
Lá irei.