Fases da minha vida ‒ 12
(Direita volver)
Depois de cumpridas as primeiras formalidades de admissão e recepção de fardamento nós, os novos cadetes da Academia, começámos a ter os rudimentos de instrução militar. Formávamos em círculo e, no meio, um jovem tenente, pacientemente, ia explicando e exemplificando as várias posturas e movimentos.
Para mim tudo aquilo era uma repetição desnecessária, pois, durante, sete anos, no mínimo, treinei e ensinei a chamada ordem unida. Às vezes, olhava com sentido crítico o instrutor, pois, alguns, não pareciam fadados para o que estavam a fazer. Já nem me quero lembrar da figura triste da maioria dos meus camaradas acabados de vir do liceu! Eram descoordenados nos movimentos, desequilibrados nas voltas, meias voltas e reviravoltas. Tinham posturas pouco condizentes com aquela que se exige de um militar e, em especial, de um oficial.
Recordo com particular saudade aquele que, estando na roda, tinha as duas mãos nos bolsos; o instrutor perguntou-lhe o motivo para tal e, na resposta ‒ com o jeito mais ou menos faia, mais ou menos ingénuo, mais ou menos espertalhão do lisboeta típico ‒, disse que estava a tirar o lenço do bolso. O tenente não se deu por achado e inquiriu se o cadete tinha um lenço em cada algibeira. Para espanto de todos nós, o meu camarada ergue as mãos com dois lenços. Foi o desconcerto geral, até do instrutor, que fez os possíveis para se não dar por achado.
Em duas semanas, se não estou equivocado, aquela amálgama de jovens era já capaz de cumprir os mínimos para entrar em formatura e responder com suficiente capacidade às ordens dos cadetes mais antigos. Daquela massa descoordenada, nasceram hipóteses de militares com postura a condizer com a carreira que se iniciava.
Mas, o que a maioria não desconfiava, é que, a par da exigida coordenação, os instrutores estavam a moldar outros aspectos, que não só os motores!
Na verdade, a ordem unida ‒ nome que se dá aos movimentos conjuntos e síncronos de uma tropa ‒ visa domesticar as mentes dos instruendos; é uma forma de subordinar quem nunca foi sujeito à disciplina colectiva; esta é fundamental na vida castrense, pois, especialmente, em combate, ninguém pode ou deve pensar que alcança a vitória por si só, pois todos contam com todos.
Esta domesticação e moldagem passa por aspectos julgados meramente preparatórios do físico do futuro oficial, contudo, feita uma análise mais profunda e cuidada, podemos concluir que, afinal, o mais importante são aspectos psíquicos e, em simultâneo, disciplinares. Darei alguns exemplos.
Mesmo no começo dos anos 60 do século passado, quando todas as deslocações já eram mecanizadas, qual seria o interesse em obrigar os cadetes a, durante os dois primeiros anos, terem aulas de equitação? Aulas, diga-se em abono da realidade, violentas, tanto pelo desgaste psicológico como pela perigosidade física. É que não se tratava de aprender a passear a cavalo; aprendia-se volteio, montando em pêlo, saindo das aulas, por vezes a sangrar do ânus, tal o atrito contra a rude manta que cobria a coluna do animal; caía-se muito facilmente e corria-se o risco de apanhar um coice do cavalo. Em média eram cerca de quinze montadas no picadeiro. Havia cadetes que tinham terror das aulas de equitação.
Qual era a necessidade?
Uma só: aprender a impor a vontade própria contrapondo-a à vontade e manha do animal; superar o medo do que podia acontecer. Acima de tudo, dominar temores, superar dificuldades.
Não se esgotava na prática hípica os mecanismos para disciplinar e moldar caracteres. O salto do muro, o salto da vala, a corrida no pórtico, o salto para o galho, a subida do muro das osgas, a descida no slide sem qualquer segurança para além da força das mãos, o salto de uma camioneta em andamento com enrolamento no solo, a descida, com enrolamento, das escadas eram tantos outros exercícios que punham à prova a capacidade do cadete se transformar num oficial capaz de marcar pelo exemplo e liderar sem mostrar receios. No fundo, queria-se fazer crescer uma certa loucura controlada capaz de levar a correr riscos sempre que necessários.
De todos os meios usados pelos instrutores destaco dois, por me parecerem especialmente marcantes: a prova de agressividade e a corrida com máscara antigás. Eu conto.
Na prova de agressividade o instrutor mandava dois cadetes calçaram umas luvas de boxe pouco acolchoadas e cronometrava, creio, quinze ou vinte segundos para que os dois se envolvessem à pancada, sem qualquer restrição de golpes… valia tudo. Mas a coisa não era assim tão simples! É que a escolha era sempre desigual: um alto com um baixo, um melhor constituído com outro pior, um com características de ferocidade com outro aparentemente calmo. Vi um cadete ‒ que não chegou a oficial ‒ fugir à frente de outro que o foi; soube de vários narizes fracturados que, no entanto, levaram os intervenientes ao oficialato.
A corrida com máscara antigás foi executada nas manobras, no Campo Militar de Santa Margarida, no final do primeiro ano (1962), e consistiu no seguinte: após uma progressão por todo o terreno, feita em acelerado, durante vários quilómetros, a patrulha era obrigada a descer um vale com grande declive e a subir a vertente oposta, servindo-se das mãos para vencer a inclinação; chegados ao topo esperava-nos um instrutor com um jeep e máscaras antigás que, com a cara suada, colocávamos e, depois, tínhamos de correr atrás da viatura donde o tenente verificava se alguém aliviava a máscara para conseguir respirar. Pensei que morria, mas a frase insistentemente gritada ou murmurada pelos oficiais era sempre a mesma: «O limite da resistência humana ainda está por descobrir!»
Ao cabo de um ano de formação, na Academia Militar, estava-se longe de se ter conseguido mudar os jovens civis, antigos alunos do liceu, em oficiais do Exército, embora a maioria julgasse o contrário. Isso mesmo foi visível para mim, com a preparação militarizada adquirida em sete invernos de Pupilos do Exército, no contacto com os cadetes do segundo ano. Era perceptível em coisas simples, tais como a tentativa de praxe, da qual rapidamente desistiam, usando uma frase com que denunciavam a sua impreparação, ainda que, conscientemente, não a admitissem: «O infra vá-se embora, porque já é praça velha». Era também detectável nas crises de autoritarismo confundidas com capacidade de liderança.
Voltarei, mais tarde, a este aspecto, que reputo muito importante, para se perceber como uma formação mais longa faz toda a diferença entre um oficial miliciano e um oficial do quadro permanente (questão que, nem mesmo os velhos oficiais com elevada graduação, durante a guerra colonial, perceberam ao aprovar cursos de curta duração para milicianos com experiência de campanha).