Fases da minha vida ‒ 11
(Academia Militar, uma surpresa)
Dei entrada na Academia Militar ‒ aquartelamento da Amadora, antigas instalações do Grupo de Esquadrilhas de Aviação República (GEAR) ‒ no dia 19 de Outubro de 1961.
Não ingressámos todos no mesmo dia; fomos entrando até perfazermos um total de duzentos e cinquenta e sete cadetes, se a memória não me falha. Trajávamos, naturalmente, à paisana, acompanhados de uma mala para transportar os nossos pertences, e foi vestidos à civil que nos dirigimos para um moderno ‒ na altura ‒ anfiteatro situado num conjunto de edifícios claramente de construção recente. Viemos, mais tarde, a saber tratava-se do palácio do Maravilhas.
Usou da palavra um capitão de infantaria ‒ era o comandante da 1.ª companhia de alunos ‒ os infras ‒ e chamava-se Pedrosa, cuja alcunha, também mais tarde aprendida, era Zé d’Adega. Sujeito espalhafatoso, nitidamente a querer impressionar os novos cadetes, exagerado nos movimentos de corpo, arengou durante, talvez, mais de meia hora.
Três ou quatro ideias retive desse discurso: primeira, ia-nos ser entregue um livro no qual estava previsto tudo sobre o modo como nos devíamos comportar na Academia e fora dela, bem como tudo o que tínhamos direito e tudo os que nos estava vedado e, ainda, tudo sobre como deveríamos requerer o quer que fosse. Eram as ISI (se a memória não me atraiçoa) ou seja, as Instruções de Serviço Interno; segunda, estávamos ali para sermos oficiais do Exército português; e, terceira, a carreira das armas não era financeiramente rendosa para ninguém, mas, entre nós, estariam, pela certa, alguns futuros generais; quarta, quem se tivesse enganado na escolha do futuro poderia e deveria sair imediatamente. Ninguém saiu.
Depois de identificarmos a nossa cama, o armário e o baú na camarata ‒ dividida em compartimentos separados por um murete de cerca de dois metros de altura, alojando dez cadetes ‒, fomos receber os artigos de fardamento: desde o bivaque às botas, passando por lençóis de cama, de banho, toalhas, camisas, fronhas de almofada, cinto, blusão, calças, polainitos.
Cadetes mais antigos abeiravam-se de nós e, chamando-nos infras, ensaiavam as primeiras as acções de praxe, as quais se centravam na tentativa de intimidar o recém-chegado, fazendo-lhe perguntas, às vezes, bastante estúpidas.
Os únicos antigos alunos dos Pupilos admitidos no primeiro ano da Academia foram, para além de mim, o António José Mendes Dias Trancoso e o Manuel António Duran dos Santos Clemente ‒ este havia sido, no Instituto, o comandante do batalhão de alunos, no ano transacto ‒ que, por nos destinarmos ao Serviço de Administração Militar, ficámos na mesma camarata, no mesmo compartimento e na mesma mesa, no refeitório.
Para quem, como eu, vinha de um internato militarizado, as instalações, a vida e as liberdades oferecidas no aquartelamento da Amadora corresponderam a ter saído de um calabouço e a ter dado entrada numa pensão de quatro estrelas!
Não me assustavam os horários, nem as formaturas, nem as continências, nem o rigor exigido no comportamento; o que me espantava era o facto de nas camaratas haver aquecedores, funcionando a água quente ‒ vinha habituado a rapar frio no Inverno ‒, ao pequeno-almoço poder escolher várias alternativas de alimentos ‒ ou todos, se para tal tivesse estômago ‒ desde o simples café com leite com pão e manteiga, até salsichas, iogurtes, ovos, mel, doce, cereais, ao almoço e jantar haver dois pratos e fruta e doce, vinho branco, tinto e água, poder fumar nas aulas práticas, consumir bebidas alcoólicas no bar de alunos, existir uma sala de música para os maluquinhos dos clássicos escutarem, no maior silêncio, as peças preferidas e, maravilha das maravilhas, sair entre o fim das aulas ‒ dezassete horas ‒ e regressar, devidamente autorizado, às dez da noite. A acrescentar a tudo isto, ainda recebia trezentos escudos, no final do mês, representando um alívio da conta bancária, que tinha de gerir cautelosamente, onde o meu pai guardara, mensalmente, o abono de família, que lhe era devido por ter um filho. Foi desse dinheiro que paguei explicações e tudo o mais necessário para concorrer à Escola Naval e à Academia Militar.
A admissão na Academia deu-me a mais completa noção de liberdade nunca sentida nos sete anos anteriores, aquando da estadia nos Pupilos do Exército.
Naturalmente, este sentimento não durou todo o tempo de formação. Seria, até anormal se tal sucedesse. Vingou até às férias do Natal. Depois tudo se tornou rotineiro e ganhou as dimensões de uma nova realidade.
Lá irei, lá irei.