Duas importâncias diferentes
- Morticínios
Quando faço a análise da guerra russo-ucraniana e não olho às baixas, aos horrores do conflito, assumo, propositadamente, a posição de oficial de estado-maior que se centra nos objectivos e nos resultados e tem de esquecer que na frente de batalha estão homens e mulheres fardados prontos a morrerem ou ficarem estropiados e, por vezes, por atrás das linhas estão civis sobre os quais têm de cair efeitos colaterais do conflito para que se cumpram os desígnios traçados sobre os mapas.
Poder-me-ão olhar quase como um monstro desumano, insensível, bárbaro e carniceiro. Qualquer estrategista que se deixe prender pelos horrores da guerra, seja general ou mero componentes de um estado-maior acaba tendo um colapso nervoso ou suicidando-se ou fugindo da guerra. No estado-maior tem de se ter em conta o que se quer alcançar e deixar de lado o quanto vai “custar” essa manobra. Tem de haver uma frieza que se afasta do comum da normalidade. Aliás, estou convencido, esta será a razão que leva a chamada tropa de linha a detestar os oficiais dos estados-maiores. Os primeiros estão sujeitos ao perigo imediato e os segundos, só quando há ataques em grande ou específicos é que sentem o peso da guerra. Nós, os portugueses, sentimos essa dicotomia na 1.ª Guerra Mundial e sobre o assunto muito se escreveu, em especial, porque uma boa parte dos filhos dos grandes políticos estavam fora das linhas de combate em cargos de apoio ou de estado-maior. Claro, houve excepções.
Mas eu sou insensível aos massacres que vejo na televisão, quase sempre ‒ ou mesmo sempre ‒ de ucranianos? Não. Como homem penso nos horrores que aquela gente tem passado, em especial as populações civis. Como homem levo em conta o que não é mostrado: os feridos, inválidos e mortos feitos pelos combates de artilharia entre os soldados e, como nada me liga, em termos de afectividade, nem aos ucranianos nem aos russos, penso no sofrimento de todos os combatentes. São jovens lançados no caldeirão da guerra que, na maior parte das vezes, nem a compreendem.
As guerras, todas as guerras, são um oceano de sangue de sofrimento eis a razão pela qual não gosto dos conflitos armados entre Estados e povos. E gosto menos, porque sou militar e nós sabemos o que é sofrer por obrigação. Todavia, como comentador da guerra, nada esclareceria se me dedicasse a contar a dores dos combatentes, pois em nada ajudaria a compreender esse mesmo sofrimento. Importante é perceber porque se sofre e o que alcança ou se perde com tanta maldade. Acima de tudo, quando estão reunidas as razões para acabar o conflito se os políticos, únicos responsáveis pelas chacinas bélicas, o quiserem, arcando com o peso dos ganhos e das perdas.
- Licenciaturas na Academia Militar
Uma crónica escrita há dias provocou em alguns leitores mais mal informados uma ressabiada reacção onde não faltaram os ataques à minha pessoa.
Ora, acontece que, por regra, só falo do que sei, por isso, aqui vou dar algumas explicações sobre as tão celebradas “licenciaturas” em Ciências Militares (que gostaria de inquirir se algum dos ditos “licenciados” sabe quais são) anteriores à data em que foram, efectivamente, criadas, pois essas “pérolas” só nasceram depois de Abril de 1974, havendo contudo, quem se arvore em “licenciado” pela Academia Militar antes da Revolução.
Comecemos pelo Decreto-Lei n.º 42151, de 1959, que criou a Academia Militar, «estabelecimento de ensino superior destinado a formar oficiais para os quadros permanentes do Exército e da Força Aérea - Considera-se extinta, a partir da entrada em vigor do presente diploma, a Escola do Exército.»
A dado passo, diz-se no preâmbulo: «Os cursos frequentados com aproveitamento passam a ser equiparados, para efeitos gerais, aos demais cursos superiores.» Ora, equiparar não é igualar!
Compulsada a legislação sobre a Academia Militar e salvo qualquer falha de análise, só pelo Decreto-Lei 678/76, de 1 de Setembro, no Art.º 32.º se diz: «Os cursos ministrados na Academia Militar para a formação dos oficiais destinados aos quadros permanentes do Exército e da Força Aérea são, para todos os efeitos legais, considerados cursos superiores e conferem o grau académico de licenciado em Ciências Militares.» Não satisfeito com isto, o legislador, dez anos depois, no Decreto-Lei n.º 48/86 de 13 de Março afirma, no Art.º 2.º, taxativamente, o seguinte: «1 - Na prossecução do seu objectivo, os EMES conferem o grau de licenciado em Ciências Militares, na especialidade que lhes corresponde.
2 - Os cursos de formação referidos no artigo 1.º que eventualmente não possam ser abrangidos na designação geral de licenciatura em Ciências Militares terão uma designação específica, que inclui o termo militar adequado, para diferenciação dos seus possíveis equivalentes civis.
3 - O grau de licenciado conferido pelos EMES é de nível equivalente ao grau de licenciado conferido pelas universidades.»
Quer dizer, já não era licenciado, mas equivalente.
São necessários um pouco mais dois anos para, o Decreto-Lei 302/88 de 2 de Setembro, no Art.º 8.º n.º 2 estabelecer, sem reticências, o seguinte: «Através dos cursos mencionados no número anterior a AM confere o grau de licenciado em Ciências Militares, na especialidade que lhes corresponde.» E, logo de seguida, no n.º 4 do mesmo artigo, vai mais longe e estende, pela primeira vez, estes estatuto a todos os antigos alunos da Academia Militar, estabelecendo o seguinte: «O disposto no n.º 2 do presente artigo aplica-se aos cursos de formação de oficiais ministrados neste estabelecimento militar ao abrigo do Decreto 678/76, de 1 de Setembro, do Decreto-Lei 42151, de 12 de Fevereiro de 1959, e do Decreto-Lei 30874, de 13 de Novembro de 1940.» Ou seja, a todos os antigos alunos da Academia Militar e aos da antiga Escola do Exército. Estranha forma de fazer de todos licenciados por Decreto.
Sempre recusei esta forma perfeitamente esdrúxula de ser licenciado de forma administrativa. Mas há e houve quem goste e tenha gostado, por sentir necessidade de ser “senhor Dr.”, tal como se o uso da distinção do posto militar não lhe chegasse, dando mais importância àquilo que, afinal, em meu entender é francamente menor: a licenciatura, pois qualquer borra-botas pode ser licenciado, enquanto ser oficial das Forças Armadas não está ao alcance de todos, quer pela missão quer pela preparação que exige.
Julgo que deixei esclarecido este ponto polémico. Contudo, chamo a atenção que uma tal solução, concebida em 1976, cometeu, quanto a mim, um grave erro: meteu as Academias Militares na Universidade, ao juntar aos curso que nela conferem o tão ambicionado grau de licenciado, ficando, por isso sujeito ao que nesta se passar e se decidir, em vez de meter nas Academias a Universidade, através da inclusão de licenciaturas específicas (como acontece nas engenharias) obrigando esta última a aceitar as especificidades militares. Mas, enfim… Nunca fomos muito dados a perceber jogos de poderes e, assim, hoje, é uma entidade civil (A3ES) quem aprova os cursos militares ministrados nas Academias, podendo suspendê-los a seu bel-prazer ou por mera teimosia ou porque acha que não correspondem, em nível, aos padrões por si estabelecidos.
E refila-se tanto por causa das reformas ao mais alto nível dos comandos militares e deixa-se esta matéria ao Deus dará!