Do 28 de Maio às Finanças ‒ Antecedentes
A situação política e financeira de Portugal nos anos que se seguiram à Grande Guerra tornou-se caótica. Ninguém conseguia pôr fim à inflação, ao consequente aumento do custo de vida, à falta de trabalho, às carências de víveres e matérias-primas importadas, à instabilidade dos governos, que se sucediam uns após outros, à insegurança social causada pelas manifestações bombistas levadas a efeito pelos anarco-sindicalistas, à falta de apoio sanitário para estancar a mortalidade infantil ou tratar dos doentes, que morriam sem assistência decente. Portugal era um lodaçal onde todos chafurdavam sem encontrar soluções.
Haveria quem atinasse com a razão do descalabro, mas não tinha processo de lhe modificar o rumo. O Estado Novo, com a influência de Oliveira Salazar e dos seus próceres mais chegados, escondeu esse caminho para somente enaltecer as incapacidades internas. Ora, o que todos sabiam, mas pareciam querer esquecer, é que a desordem interna era essencialmente uma consequência da desordem externa.
Na verdade, Portugal foi sempre deficitário em determinados produtos essenciais à vida, porque não os produz em abundância. Se é certo que nos mares da costa nacional sobejavam as espécies mais vulgares e que, por via da quantidade de peixe pescado, não havia carências no litoral, também é verdade que sempre faltou trigo necessário para fabrico de pão, elemento básico da dieta alimentar das famílias. Se abundava o vinho e a fruta faltava a lã, mas, acima de tudo, nos séculos XIX e XX, faltavam o ferro e o carvão elementos primários para acompanhar o desenvolvimento resultante da Revolução Industrial. Atrás destas faltas vinham quase todas as indústrias da modernidade. No nosso país, já depois de dobrados os primeiros anos do século passado, continuava-se a apostar mais na agricultura que na industrialização. Mas esta aposta não era só de natureza económica, mas, principalmente, de âmbito social, pois, até muito tarde, no século XX, o grande sinal exterior de riqueza era a posse da terra, fosse na área do minifúndio ou na do latifúndio. Ter propriedade agrícola era ter poder e ser rico. Percebe-se a razão: a mão-de-obra, por tão barata e carente de dinheiro, vendia-se por preço que quase se assemelhavam ao valor de uma parca esmola. Possuir terra era dominar populações, que lutavam pelo trabalho.
No imediato pós-guerra, em 1918/1919 os circuitos comerciais, já desarticulados por causa da acção dos submarinos alemães e mais ainda pela necessidade de converter alguns sectores da indústria mecânica em fábricas de armamento ou de componentes a ele necessários, mantiveram-se, por muitos anos, incapazes de se recomporem porque o mercado de consumo não tinha capacidade de compra. E este efeito ganhou movimento ondulatório: não se fabrica, porque não há mercado de compra; não se compra, porque não há quem fabrique. A Europa de 1919 não teve o Plano Marshall de 1948, por isso a sua reconstrução e a reconstrução dos circuitos produtivos e comerciais demorou mais tempo, agravada pela imposição de pesadas indemnizações à Alemanha, que, tendo sido uma potência industrial e comercial antes da guerra, se viu reduzida a uma economia pouco mais significativa do que de mera subsistência. A Grã-Bretanha, que tinha tido pleno emprego durante a guerra, caiu numa crise, verificando-se uma taxa de desemprego de 10%, e uma quebra do poder de compra da sua moeda, que voltou ao padrão ouro supervalorizando-se em face ao dólar; do ponto de vista político houve fortes desequilíbrios com a independência de parte da Irlanda, revoltas populares na Índia e grande confusão por causa da declaração Balfour sobre a Palestina. Por lá aconteceu o que não era de todo comum: três governos em três anos.
A França saiu da guerra também com uma economia em recomposição e esperou muito das indemnizações alemãs, que, quando deixaram de ser pagas em dinheiro, deram origem à ocupação da Renânia e da confiscação de toda a produção de carvão e ferro. Mas nem isso alterou demasiado o panorama económico e financeiro daquele país supostamente vencedor.
Na Alemanha, como já referi, a República foi incapaz de reequilibrar a política e a economia; pelo contrário, aumentou desmesuradamente a inflação para valores jamais imaginados.
Sendo que Portugal, antes da guerra, tinha como seu primeiro fornecedor a Grã-Bretanha, que era, também, o primeiro comprador dos produtos nacionais, e segundo fornecedor a Alemanha ao mesmo tempo que era o terceiro comprador, tendo em consideração que também a Espanha atravessava uma crise económica, facto que a afastava da situação privilegiada de comprador e fornecedor de Portugal, o nosso país, cada vez que importava matérias-primas ou produtos essenciais à vida interna importava, também, a inflação externa, agravando em muito a precária vida nacional.
Muito embora com alguns momentos de melhoria e prosperidade, foi este quadro económico que determinou grande parte da instabilidade política portuguesa nos anos que vão de 1918 a 1926. Só quando os nossos principais parceiros comerciais voltassem à prosperidade é que seria possível reequilibrar a economia nacional ou, a alternativa, teria de passar por uma outra solução: encolher a dependência do estrangeiro e tentar a quase impossível autarcia portuguesa. Esta medida conduziria, pela certa, as populações a sérias e rigorosas restrições jamais imaginadas.
Ora, a solução para atingir a paz social necessária ao saneamento das finanças e da economia estava, segundo se cria, na suspensão da democracia liberal republicana e impor uma ditadura militar.
Não foi inédita esta atitude na Europa do após guerra, pois, logo no começo da década de vinte, em Itália, foi imposta a ditadura fascista e, bem mais próximo da nossa fronteira, em Espanha, aconteceu o mesmo através da acção do general Primo de Rivera, de 1923 a 1930.
No dia 18 de Abril de 1925, na rotunda do Parque Eduardo VII, concentraram-se forças do Exército revoltosas, chefiadas pelo general Sinel de Cordes, Raul Esteves, Freire de Andrade, Pedro José da Cunha e Jaime Baptista. Foram mais de sessenta os oficiais envolvidos. Foi uma tentativa de implantação de uma ditadura militar, que saiu derrotada graças à acção do ministro da Marinha, Pereira da Silva. Este golpe teve por inspiração o de Espanha, que havia levado Primo de Rivera ao poder. Não nasceu exclusivamente da vontade dos militares; tinha por trás uma corrente política que se apoiava na Cruzada Nun’Álvares, um movimento nacionalista nascido em 1918 e desaparecido em 1938.
Esta primeira tentativa nacionalista foi logo seguida de uma outra, a 19 de Julho, a qual, depois de decretado o estado de sítio, foi derrotada com bastante dificuldade.
Os implicados em ambas os golpes acabaram julgados em tribunal militar e declarados inocentes. Estava aberta a porta à nova e derradeira tentativa, a de 28 de Maio de 1926, que eclodiu em Braga, comandada pelo general Gomes da Costa, e, em marcha mais ou menos forçada, se dirigiu para Lisboa onde já havia a certeza de uma adesão completa.
A ditadura era uma realidade e os novos poderes ‒ os militares ‒ suspenderam a Constituição Política da República. Tudo aconteceu porque havia um clima e uma aceitação prévia da alteração que, julgava-se, iria curar miraculosamente o estado em que se encontravam as finanças, a economia e a ordem social. Nada seria mais falso.