De janelas e portas abertas
Sou do tempo em que, ao falarmos ao telefone, quando se ouvia uns estalidos se desconfiava de estarmos a ser escutados (escutas que podiam ser feitas, normalmente, por uma de três entidades: PIDE, PJ e CTT) e imediatamente se desligava. Também sou do tempo em que a nossa correspondência postal era sub-repticiamente aberta (quase não se dava por isso) e era fotocopiada ou simplesmente copiada ou confiscada (quem fazia este trabalho ou eram legionários da chamada Legião Portuguesa, funcionários dos CTT, ou a própria PIDE para cuja sede era encaminhada a correspondência dos politicamente suspeitos). Depois, aqueles que se atreviam a escrever para os jornais, em especial os da chamada pequena imprensa ‒ ou seja, os jornais de província ‒, porque na grande imprensa só tinham cabimento os jornalistas de renome, podiam ter ficha na PIDE/DGS através da denúncia das várias comissões de censura prévia, se se atrevessem a dizer o que não deviam dizer. Finalmente, os filiados ou simpatizantes do PCP ou de pequenos partidos da extrema-esquerda ou, até, os velhos democratas da chamada oposição democrática (gente vinda da 1.ª República) eram vigiados de diferentes maneiras de modo a que a polícia política pudesse exercer o seu múnus persecutório com direito a prisão por poucas horas ou por muitos anos.
Chamávamos a isto fascismo! Medidas fascistas atentatórias da liberdade.
Quando entrámos numa outra dimensão das comunicações interpessoais, aquelas a que chamámos Internet, quando se passou à comunicação individual através do telemóvel, quando usamos uma triangulação com satélites artificiais para saber onde estamos e o melhor caminho para irmos para onde desejamos ir, a que chamamos GPS, quando o nosso computador deixa de guardar o que nele guardávamos e coloca tudo isso naquilo a que chamamos nuvem, caros leitores, escancarámos as janelas, todas as janelas e todas as portas da nossa casa interior para nela deixarmos ver tudo o que se quiser, mas, quando passámos a utilizar redes sociais, que podem ir do simples chat a todas as outras, incluindo os inocentes blogues, deixámos que entrassem na nossa casa interior, mas, mais do que isso, para quem saiba usar toda essa informação, deixámos que manipulassem, como lhes apetecer, as nossas vidas e, mais ainda, as nossas emoções.
Já não é segredo que as eleições desse populista que foi eleito Presidente dos EUA, Donald Trump, foram manipuladas a partir da Rússia. Vem noticiado nos jornais ‒ o que não me dá garantias ‒ mas, mais do que isso, foi verificado por senadores americanos cuja informação é proveniente das investigações de organismos como o FBI. E, a não ser que o próprio FBI esteja a ser manipulado por estranhos, julgo, ainda, para este efeito e só este, ele é fiável.
Essa coisa que há duas décadas chamámos Big Brother, essa possibilidade de haver quem nos (para aqueles que passaram a usar as tenologias de ponta) espiasse em todos os momentos da nossa vida e nos recantos mais escusos dos nossos segredos, está, no momento que escrevo, absolutamente ultrapassada, porque já é possível que um Super Big Brother vigie e comande o Old Big Brother. E cada dia que passa essa capacidade vai aumentando pela acção permanente e persistente dos hackers, ou seja, os descobridores dos segredos das fechaduras, que admitem fechar as nossas informações nos nossos computadores, mesmo que não usemos a tal nuvem.
Os Estados julgam, mas julgam mesmo, que sabem guardar bem os seus segredos, aqueles que passaram pelos telemóveis, pelos tradicionais telefones, pelos computadores encriptados das suas repartições e pelos seus mais altos e inexpugnáveis senhores do poder. Contudo, a verdade é que há sempre a possibilidade de existir alguém que penetra na rede e chega ao fundo desses top secrets. Aliás, basta pensarmos um bocadinho para percebermos que a inteligência do ladrão anda sempre à frente da do polícia, assim, por muita segurança cibernética que possa existir, há-de haver sempre um ladrão que fura o esquema e entra nele.
Agora que estamos dentro deste mundo democrático e livre, regido pela ciência cibernética, podemos perceber como neste conflito entre a Rússia, os EUA e a Ucrânia, que arrebanha toda a Europa, em especial a da União, tudo está construído para parecer e não para ser o que realmente é. A luta de espiões, embora continue a fazer-se com gente de carne e osso nos mais diversos locais, está a ser, cada vez mais, substituída por gente que, com farda ou sem ela, está sentada a milhares de quilómetros de distância e bombardeia os estados-maiores e a nós com informações falsas, verdadeiras, semi-falsas e semi-verdadeiras. Bombardeia com a mesma impunidade e segurança que os drones destroem os alvos escolhidos num búnquer algures no mundo.
O informador da PIDE/DGS, tal como o agente dessa prestimosa organização fascista, tendo sido personagens horríveis, no seu tempo, hoje, com os olhos da História do presente e do futuro, foram meninos do coro da paróquia mais absurdamente estúpida da mais ignara diocese. Os manipuladores de opinião do passado são, historicamente, uns inocentes aprendizes de como se dá a volta à vontade colectiva de quem se quiser, pois os de hoje tanto nos levam a consumir o alimento que eles entendem que devemos comer como a votar no partido que eles querem que nós votemos.
Assim, cada vez mais, é preciso perceber estes mecanismos para fazer escolhas políticas que julgamos acertadas, pois nada nem ninguém nos garante que o sejam. E a desconfiança é a primeira virtude que este sistema de comunicação global nos impõe do mesmo modo que, nós portugueses, no tempo do fascismo, desconfiávamos do tipo que, na mesa do café ao lado da nossa, parecia ler o jornal, mas escutava o que dizíamos, ou desconfiávamos do pobre chinês vendedor de gravatas que, carregado, se acercava de nós quando conversávamos em voz baixa.
Desconfiar é a palavra de ordem!