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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

19.11.22

Coisas de um outro tempo


Luís Alves de Fraga

 

Ao estarmos todos com o “Credo na boca” por causa das profundas alterações climáticas, eu resolvi recordar coisas de quando era garoto, sendo comuns a muita gente da minha idade, que agora lê este apontamento, e, ao mesmo tempo, incomuns aos mais jovens que, ou só ouviram contar ou nem isso.

São lembranças de um ”menino da cidade de Lisboa”, nascido no meio de uma classe média baixa, com mais ou menos remedeio financeiro, graças ao trabalho extra de um pai que podia manter duas formas de fazer “entrar” dinheiro em casa.

Primeiro do que tudo, vejamos, em traços muito largos, o que era a cidade de Lisboa entre 1941 e 1955, mais ou menos.

 

Vista do ar, de avião, a nossa capital fazia lembrar, “grosso modo”, um chapéu de coco: estendia-se junto ao Tejo, numa faixa pouco profunda para Norte e para Sul (a Lisboa oriental e a ocidental), indo até Xabregas, por um lado, e até Algés e Dafundo, por outro; o chapéu, propriamente dito, tinha o centro na hoje Praça do Comércio e subia até Benfica, formando um redondo ali por volta do Alto de S. João, de um lado, e outro por Campolide/Campo de Ourique. No “interior do chapéu” ficavam os bairros típicos que iam da Graça a Alfama, de Benfica a S. Vicente, à Madragoa, a S. Bento, Rato, Bairro Alto e, mais distante, Alcântara tudo ligado pelas ruas adjacentes numa malha mais ou menos confusa e intrincada.

Os automóveis eram poucos e circulavam mais intensamente na chamada “Baixa”, o mesmo é dizer, na zona de entrada do “chapéu”. Quanto mais nos afastávamos do centro mais raros eram os veículos movidos a combustíveis fósseis; havia carroças puxadas por muares e, às vezes, burricos com alforges de cada lado, carregando tudo o que imaginar se possa… e até havia as carroças do lixo e dos cães! A Lisboa dos bairros “típicos” era a cidade hipomóvel, sendo que na zona da “Baixa” só no fim da noite e madrugada dentro era frequentada por carroças para alimentarem o imenso mercado da Figueira, também chamado praça da Figueira.

Os transportes eram os designados “carros eléctricos” dos quais resta a memória da carreira 28 (da Graça à Estrela) e pouco mais. A rede electrificada servia toda a cidade de Norte a Sul de Leste a Oeste e abria-se como ribeiros descendo as colinas e passando pelos vários planaltos de Lisboa. Não ganhava grandes velocidades (as maiores eram as que corriam ao lado do rio para Algés e o Dafundo, nessas o guarda-freios largava-os e lá se ia a quarenta ou cinquenta quilómetros à hora). Mas, ainda que vagarosos, os “eléctricos” eram “rápidos”, porque, não havendo automóveis e carroças a empatar, eles chegavam lestos aos términus das linhas. Para se perceber, em 1954 ia-se da Graça a S. Domingos de Benfica em cerca de meia-hora ou dos Anjos (na Avenida Almirante Reis) a Alcântara em vinte a trinta minutos. Quem tinha duas horas para almoçar dava para sair do emprego, ir a casa comer e voltar. Que Lisboa tranquila era esta!

 

E as casas de Lisboa? O Professor Oliveira Marques explica muito bem, na sua “História de Portugal” o traçado dos interiores das habitações lisboetas, do começo do século XX. Mas, tentemos dar um panorama mais geral.

As casas do século XIX e anteriores não tinham um projecto racional, resultavam do espaço para construir o fogo e, dentro deste, as divisões faziam-se de acordo com a sensibilidade do proprietário do imóvel ou do empreiteiro. Casa de banho era coisa que não existia, nem sanita. As necessidades básicas eram feitas em bacios, também designados por penicos, que, depois se despejavam na pia da cozinha, única canalização para o esgoto colectivo do prédio, que ligava à canalização urbana que, em regra, se encaminhava para o rio Tejo ou para as ribeiras existentes a céu aberto ou já encanadas, as quais acabavam chegando ao rio, no qual ainda nadavam golfinhos e se pescavam peixes para servir à mesa.

 

Quanto aos banhos, eram, em regra, semanais e tomados em banheiras de folha de flandres zincada, que se enchiam com panelas de água aquecida no fogão e depois se temperava com água fria vinda das torneiras da casa. A cozinha era, naturalmente, o local próprio para fazer as lavagens semanais.

Nos quartos havia bacias de porcelana (a maior parte das vezes de ferro esmaltado), encastradas numa armação de ferro pintado, que despejavam para um balde e havia também um bidé para as lavagens “menores” e diárias. Claro, junto da cama, na mesa de cabeceira, por trás de uma portinhola, lá estava o bacio ou “vaso de noite”.

 

E os cómodos para preservar a roupa que se não usava? Temos aqui uma outra novidade. Na casa não havia os chamados roupeiros e, muito menos, closets; havia um ou dois guarda-fatos (consoante o número de membros da família e o tamanho dos ditos móveis) e neles se pendurava a roupa de Verão e de Inverno, porque isso de roupa de Primavera e Outono era coisa que não existia. Assim, nos ou no gavetão do ou dos guarda-fatos guardavam-se as camisas do homem. Era um móvel para ter os fatos, vestidos e casacos compridos, a gabardina, o sobretudo e nada mais. No chamado psiché, que servia de toucador para as senhoras, metiam-se, nas gavetas, as blusas e camisolas, bem como a roupa interior do homem e da mulher. Eventualmente, e nas casas com um pouco mais de espaço, havia um móvel camiseiro, com gavetas fundas, para as blusas, camisolas e camisas. No quarto de dormir, para além destes objectos de resguardo, existia a cama, as duas mesas de cabeceira e uma ou duas cadeiras.

 

Vinha, depois, a sala de jantar, que na maioria das vezes, funcionava, também como sala de visitas. Por lá, para além das cadeiras e da mesa, havia o que se chama um aparador e, às vezes, um louceiro onde se guardavam o serviço de pratos, de café e de chá se houvesse dinheiro para os ter completos ou quase. E uma pequena mesa (se houvesse) onde repousava o aparelho de rádio, para ouvir música e os noticiários.

No resto da casa poderiam existir os quartos dos filhos que, mais modestos, obedeciam ao padrão do dos pais e a cozinha onde para além dos armários havia uma mesa, que podia servir para comer todos os dias e nela confeccionar as refeições; o fogão, sobre a pedra que finalizava a chaminé, poderia ser de lenha (os mais antigos e mais caros) fogareiro ou fogareiros a carvão ou, mais moderno, a petróleo ou super moderno, a gás. Por baixo da pedra da chaminé ficava a chamada carvoeira onde se guardava a lenha ou o carvão. Na parede havia um armário todo revestido a rede fina, que servia para guardar os restos das refeições durante as próximas vinte e quatro horas, porque isso de frigorifico ou geleira era coisa para muito rico.

A casa era, como se dizia, para a mulher e para os filhos enquanto não podiam brincar na rua, porque a exiguidade, por ser enorme, atirava o pai para o café ou para a tasca onde à volta de uma bebida retardava a chegada ao lar.

 

Creio ter dado um retrato mais ou menos fiel das casas da pequena e média-baixa burguesia de Lisboa no período a que me reportei.

Esta cidade com este tipo de vida não era uma urbe de consumo; era uma povoação onde se trabalhava, comia, dormia, vivia os bons e maus momentos até à hora da reforma ou da morte.

 

Havia poluição em Lisboa? Claro que havia, mas, nas noites sem lua, ainda se viam brilhar as estrelas no céu escuro e viam-se estrelas cadentes. As fábricas, especialmente existentes na zona oriental, com as suas chaminés a vomitar CO2, os camiões, raros, com os escapes a lançar fumo negro poluíam, mas havia gente pobre que andava a catar papel e papelão para vender a peso e outros recolhiam todo o trapo que podiam também para vender e ser reciclado; no resto não havia cuidados, mas havia andorinhas que chegavam na Primavera e iam-se embora no começo do Outono. Onde estão elas, agora, nos céus de Lisboa?

 

Senhores ambientalistas não fomos nem somos nós quem polui o ar e mata a Natureza. Os responsáveis são aqueles que introduziram uma mudança no modo de se viver; esses quiseram dar-nos aquilo que em inglês começou por se chamar “welfare” e se traduz por “bem-estar”. Qual e de quem? O deles, o dos que nos impingem tudo, porque nos faz bem, nos põe bonitos, nos dá boa-vida ou o nosso, que nos cria alergias e nos mata e ao planeta no meio de sorrisos?

 

Não lutem contra os produtores; comecem por lutar contra a vossa incapacidade de resistir ao desafio do consumo, comecem por aprender a dizer não a este tipo de vida, comecem por rejeitar a compra e façam tudo para que, em vez de grandes roupeiros, grandes sapateiras, grande aparelhos de rádio, grandes televisores, passem a contentar-se com pouco e exijam melhor qualidade e muito maior durabilidade e, se assim procedermos todos, mas todos, negando os programas de modas, e negando as desnecessidades, talvez ainda vamos a tempo de arruinar uma série de fábricas de nada, uns comércios de coisa nenhuma e de salvar o planeta para que os nossos netos e os netos dos nossos netos possam ter céu para ver e estrelas para identificar.

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