A Revolta dos Marinheiros
Os códigos e regulamentos nas Forças Armadas (FFAA) por regra são uma “armadilha” que garante a impunidade dos superiores hierárquicos perante a manifestação de desagrado dos subordinados. Digo-o com a consciência militar que começou nos meus treze anos de idade e passou por uma vida de serviço activo de mais de quarenta anos, tendo sido desligado de toda a actividade castrense e de toda a disciplina a que estive obrigado aos sessenta e cinco anos de idade, quando passei aos quadros de oficial reformado.
Vivi a mais grave situação de indisciplina que ocorreu nas FFAA nacionais no dia 25 de Abril de 1974; meses mais tarde vivi uma situação de indisciplina colectiva numa unidade militar onde estava colocado e onde desempenhava um cargo oficioso, na altura, com valor de legitimidade (delegado do MFA).
Desde muito novo aprendi que o cumprimento da missão, nas FFAA, prevalece ao risco que ela implica, traduzido na frase simples de, “primeiro cumprem-se as ordens e depois reclama-se”.
Aprendi que a razão está sempre, quando se quer, do lado de quem manda e raras, muito raras, vezes, do lado de quem tem de obedecer. Contudo, os códigos e regulamentos, não foram feitos para serem uma grilheta que amarra os subordinados e tal facto é esquecido por muitos, mas mesmo muitos, chefes, comandantes ou outros dirigentes, porque, na legislação, há um dever que obriga estes perante aqueles que lhes devem obediência, chama-se DEVER DE TUTELA. O que é isto?
É a obrigação que o comandante ou chefe ou dirigente tem de zelar pelos interesses e segurança dos seus subordinados. É a ele que compete avaliar a missão e recusá-la ou retardá-la perante toda a restante hierarquia. Raros são os comandantes que têm a coragem de exercer até ao limite máximo o dever de tutela, porque, “primeiro cumpre-se e, depois, reclama-se”. São dois tipos de valores disciplinares que estão em confronto e rara é a cadeia de comando que tem, também, coragem para a enfrentar e levá-la às últimas consequências. Em toda a minha vida militar activa, recordo-me de um único Chefe de Estado-Maior da Força Aérea recusar cumprir missões internacionais por falta de dinheiro para manter operacionais os meios de que dispunha. Foi, nos anos setenta do século passado, o general Lemos Ferreira.
Na actualidade os oficiais-generais que comandam as FFAA, em nome de uma subordinação que resulta de primeiro cumprir e depois reclamar, não foram nem são capazes de dar o murro na mesa dos políticos e dizer a frase mais difícil de arrancar da boca de um militar: NÃO CUMPRO, PORQUE NÃO TENHO MEIOS.
É que, há mais de trinta anos temos vindo a assistir à sucessiva degradação das capacidades militares do país (levando-me a pensar que só existem para dar “lustre”, em certos momentos, a certas cerimónias) e, para além das PRESUMÍVEIS reclamações de gabinete, de nada se dá conta perante a Nação. E o problema é esse mesmo: é que, se na prática os militares estão sujeitos ao poder político, eles têm de dar contas à Nação, porque existem em nome dela e para a servir a ela. A Nação tem de saber com que FFAA pode contar quando delas depender a integridade e a segurança do nosso território e das nossas vidas.
A guerra é, realmente, um assunto muito sério para ser deixado só nas mãos dos militares, todavia, é nas mãos destes que está a DISSUASÃO, a SEGURANÇA e a DEFESA da Nação, assuntos demasiado sérios para serem deixados SÓ e SOMENTE nas mãos dos políticos.
Um navio de dois motores com um só operacional é um risco para si mesmo e para a navegação marítima; um navio com três geradores de energia em que só dois estão operacionais é um risco para a tripulação e, em certas circunstâncias, para a navegação marítima. Mandá-lo para o mar já é ousado, mas impor-lhe uma missão operacional militar, é muito mais.
O almirante Gouveia e Melo tem entre mãos um “bom” sarilho… Ou pune o comandante do navio, porque não cumpriu o dever de tutela e não soube colocar superiormente a situação técnica ou pune os treze “revoltosos” ou assume a responsabilidade de ter mandado executar uma missão com declarados riscos para a guarnição do navio, a segurança do próprio navio e a insegurança marítima que aquela embarcação poderia vir a causar se se verificassem situações adversas. E se for esta última a posição adoptada, só tem que responsabilizar a ministra da Defesa e o Governo por não lhe libertarem meios que lhe permitam poder responder pela vida dos homens que comanda e pela segurança do material que existe na Armada.
Este incidente vai dizer-nos muito do comando da nossa Marinha de Guerra, lá isso vai!