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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

05.07.24

A QUARTA HOSPITALIZAÇÃO

04 ‒ O Cabo Ricardo


Luís Alves de Fraga

 

Foi notícia na rádio, na televisão e na imprensa nacionais o atropelamento de um militar ‒ o cabo Ricardo Esteves ‒ do posto da GNR de Arraiolos, no começo da noite do dia 30 de Janeiro do corrente ano (entre as várias fontes encontradas na Internet, escolhi a seguinte para aqui ficar de testemunho: https://televisaodosul.pt/militar-da-gnr-gravemente-ferido/ ).

Esse militar de cavalaria, estava na cama quase em frente da minha, na enfermaria do HFAR. Nasceu, segundo me parece, em Setúbal e há muitos anos está radicado em Arraiolos. Tem, ao que suponho, quarenta e sete anos de idade e duas filhas de um primeiro casamento, moçoilas já bem crescidas. Ainda tem mãe, que adora como é visível em função do que diz, e uma segunda esposa extremosa, a D. Maria Teresa, que o acompanha em visitas diárias, quando não tem de ceder a vez a outros familiares. Naquela área do HFAR não há ninguém que desconheça o Ricardo.

Antes de passar ao relato do estado sanitário do militar e da minha relação com ele, deixem que vos conte como foi parar ao hospital.

 

Na estrada nacional 4 (EN4) ao fim da tarde, começo da noite, avariou-se um camião que ficou imobilizado na berma da estrada. Foi accionado o dispositivo de segurança da GNR, que destacou para o local uma patrulha motorizada, com a finalidade de sinalizar com pinos o veículo avariado e acautelar o trânsito naquele troço da via. Naturalmente, porque já se tinha posto o sol ou, pelo menos, já era quase noite, os militares envergavam os coletes e perneiras reflectoras e usavam lâmpadas de sinalização. O cabo Ricardo ia colocando os pinos, começando da traseira da camioneta avariada para a dianteira, quando, a velocidade não registada, foi abalroado por um veículo ligeiro, que lhe embateu na anca direita e o projectou a uma distância calculada entre quarenta e cinquenta metro. A pancada foi de tal ordem que o coldre da pistola que transportava à cintura ficou preso na frente do carro conduzido por alguém que diz não ter visto nem sinalização nem o cabo Ricardo vestindo o colete reflector. Imagine o leitor o estado físico em que ficou o militar… Eram fracturas expostas, sangue e a possibilidade de ter morrido com o embate e as sucessivas reviravoltas que terá dado contra o asfalto até ficar imóvel. De urgência foi levado para o hospital de Évora e dali transferido, depois de estabilizado, para o hospital de S. José onde permaneceu internado durante dois meses, em situação de coma induzido, tendo sido submetido a sucessivas cirurgias ‒ uma delas à tíbia direita da qual faltavam oito centímetros de osso.

No dia seguinte ao acidente, a esposa recebeu um telefonema do Presidente da República a oferecer a sua solidariedade. E pronto! Igualmente aconteceu com o comando da GNR.

O cabo Ricardo foi transportado para o HFAR, onde entrou em estado quase vegetativo e onde permanece até agora. Passemos ao que dele eu conheci aquando da minha estadia na mesma enfermaria daquele hospital.

 

A primeira impressão que tive foi de estranheza, pois tanto se dirigiam ao cabo ‒ a quem quase toda a gente trata por tu ‒ com grande carinho como com aspereza; aquela aspereza das mães ao ralharem com os filhos desobedientes. Fiquei, como se usa dizer, de orelha arrebitada para perceber o que se passava com aquele “jovem” no meio de velhos militares caducos.

O Ricardo tirava a fralda de papel, que logo de manhã lhe colocavam, mexia nas partes íntimas com total falta de pudor. Era, realmente, uma criança inocente sem a noção da maldade. Lá vinha o ralhete. Depois, sentado numa cadeira de rodas, ficava com o olhar parado no vazio ou seguia atentamente os diálogos dentro da enfermaria, sendo, todavia, impossível compreender se ele estava a perceber o que se dizia.

O Ricardo não fixava o nome de ninguém; uma enfermeira perguntava-lhe quem era e ele dizia o primeiro nome que lhe vina à mente. Ela ensinava-o e perguntava novamente e a resposta era diferente ou igual à anterior. Para ele o “ti Chico” (companheiro mais antigo na enfermaria) era aquele que melhor conhecia.

De repente começava a queixar-se, baixinho, muito baixinho, porque o Ricardo não é homem de grandes gritos: «Ai Jesus que dores tenho nas minhas pernas» e olhava para nós, acrescentando: «Como é possível, num hospital, ter-se tantas dores!»

 

Havia, de entre o pessoal auxiliar, alguns que vinham puxar pela memória do Ricardo só para se rirem dos disparates que dizia. É evidente que nem toda a gente que trabalha num hospital o faz com amor e compaixão.

Ao cabo de dois dias a observar todos estes comportamentos, tomei a decisão de, em concordância com as minhas possibilidades e sem ferir ninguém, começar uma acção pedagógica junto do cabo Ricardo e do pessoal que vinha fazer risota com as suas impossibilidades.

Primeiro comecei a trata-lo por senhor Ricardo, depois entabulei a conversa possível com ele, escutando-o com muita atenção e fazendo-lhe perguntas para comprovar da veracidade das suas afirmações. Compreendi que muita coisa passava por uma imaginação delirante no meio de algumas verdades e fui dizendo ao pessoal de enfermagem e auxiliar que tinha muito dó do estado do Ricardo, pois havia perdido uma parte da memória e havia que, com cuidado, ir ajudando-o a recordar-se.

Um dos meus primeiros passos foi levá-lo a fixar o meu posto e nome, pois, sempre que tal lhe perguntava respondia-me «Ti Xicho” (creio que poderei grafar assim). Pacientemente dizia-lhe «Sou o coronel Fraga»; tornava a perguntar e ele a responder como inicialmente; eu ajudava-o e dizia: «Co… co…» e ele respondia: «Coronel Xicho». Eu repetia: «Coronel está bem, mas não sou Xicho, sou Fra… Fra…» e ele acabava: «Fraga». E assim passávamos meia hora, deixando-o, depois, descansar.

Como sabia que era de cavalaria comecei por tentar trazer-lhe à memória coisas sobre as quais tinha a certeza que ele sabia.

‒ Senhor Ricardo, como é que se chama o arreio que se põe na cabeça do cavalo?

‒ Arreio!

‒ Não. Só o da cabeça… Ca…

Com um sorriso ele dizia:

‒ Cabeçada.

Neste caminho fomos prosseguindo durante talvez quinze dias e as pessoas já não vinham rir-se nem fazer perguntas parvas ao cabo Ricardo. Mas feliz, mesmo feliz, fiquei na manhã em que ele olha para mim e, sem que o interpelasse, diz: «Coronel Fraga». Bati palmas e dei-lhe os parabéns. Claro, foi sol de pouca duração, mas tal acção espontânea queria dizer que alguma coisa se estava a abrir no fundo escuro da memória presente do meu companheiro de enfermaria.

 

Não posso deixar de louvar a acção de uma auxiliar, senhora dos seus sessenta anos que, a todas as refeições vinha partir-lhe a comida e, quando ele já estava cansado de movimentar a mão direita, lha dava à boca.

E menos posso esquecer a atenção que o médico militar, major, Vítor Freitas, tomava àquele paciente. Da boca dele ouvi dizer que estavam a movimentar-se para mandar o cabo Ricardo para a recuperação de Alcoitão.

De lastimar é que a queixa contra o condutor que atropelou o cabo Ricardo tenha de ser apresentada pela família quando, na minha opinião, tudo devia ser tratado pela GNR, incluindo o apoio jurídico à família. A vida de um militar deveria estar acima de todos os valores materiais da corporação militar. Esse é o exercício do dever de tutela.

 

Fui longo, mas a história épica do cabo Ricardo Esteves merecia ser contada por quem viu parte dos estragos que um condutor automóvel, movendo-se em alta velocidade, pode fazer na vida de um ser humano, que me tocou o coração.

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