A QUARTA HOSPITALIZAÇÃO
03 ‒ Os doentes internados
Quando cheguei à enfermaria, a tal que tenho vindo a referir, éramos seis doentes nas seis camas existentes. Naturalmente, por uma reserva natural, vou alterar, quando os citar, os nomes dos internados, com excepção de um, por se tratar de um caso público.
Ao entrar, logo do lado esquerdo, estava um general ‒ um herói da Guerra Colonial, com noventa anos de idade, quase cadavérico, que recusava comer, beber e tomar medicação. O estado de senilidade era avançado, desejando somente que o deixassem pôr de pé ‒ o que era fisicamente inviável ‒ para ir para casa. Uma curiosidade interessante é que, pareceu-me, quando os filhos e uma neta, em diferentes alturas, o visitaram, conseguia manter um diálogo aparentemente com nexo, que desaparecia de imediato, mal algum deles virava costas.
Não sei há quanto tempo estava internado, mas creio que, depois da minha entrada, ficou, talvez, mais cinco dias. Nos três primeiros fez, a si mesmo, tropelias horríveis, tais como arrancar os cateteres das veias, ficando a sangrar e a esfregar com a mão livre o sangue. Depois, levaram-no, creio que a fazer um exame, e quando regressou vinha sereno, a dormir a maior parte do tempo, até que a família o levou de ambulância para casa. Soube, três ou quatro dias depois, que havia falecido na residência. Posso garantir que o pessoal de enfermagem e auxiliar foi de uma extraordinária paciência para com ele mais os seus delírios, que passavam, também, por se despir todo mal sentia o casaco do pijama sobre a pele e os ossos.
Li a biografia do general na informação disponível na Internet e fiquei chocado com o descalabro a que pode chegar a mente humana. Vê-lo foi um dos motivos para, nos muitos momentos de reflexão que um internamento hospitalar propicia, me levar a pedir a Deus ‒ aquele Deus que procurei, na condição de agnóstico, desde os meus vinte e poucos anos ‒ que me mantivesse lúcido até à hora da morte e que esta fosse rápida.
Na cama do lado direito de quem entra na enfermaria, estava um doente idoso, talvez com mais de oitenta anos, que se deslocava com segurança, apoiado na sua bengala, e não dava conversa a ninguém. Estivemos juntos muito pouco tempo. Regressou a casa, aparentemente em bom estado de saúde. A cama ficou vaga. Na cama ao lado dessa estava um primeiro-sargento da GNR, com a provecta idade de noventa e quatro anos, que havia caído de uma escada quando atirava um pauzito a um cão para ele correr e brincar. Fez três traços de fractura nas vértebras cervicais e várias escoriações no corpo.
Não sei há quanto tempo estava internado, mas sei que recusava comer, tomar a medicação e manter o colar de imobilização cervical. Momentos houve que teve de ser amarrado para manter a posição estável. Começou a acalmar no delírio senil, embora reconhecesse sempre a filha quando o visitava. Com o passar dos dias ‒ e não posso precisar quantos ‒ as únicas lamúrias que se lhe ouviam era a terrível frase «Deixem-me morrer». Certa manhã, ao mudarem-lhe a fralda houve um certo corrupio entre os enfermeiros e as auxiliares e o doente foi levado para fora da enfermaria. Vim a saber que tinham dado com uma hemorragia ‒ não sei onde nem como ‒ só sei que foi transferido para o serviço de cirurgia.
Fiquei eu no meu canto e, na minha frente, um velho primeiro-sargento de infantaria da GNR, homem com oitenta e nove anos de idade, transmontano de Bragança, e uma têmpera rija e teimosa, embora muito educado. Sofria de um problema da coluna cervical e tinha dores que lhe dificultavam certos movimentos. Estava internado há mais de dois meses. Claro que eram já se notavam as repetições oratórias próprias da idade e do pouco trabalho intelectual, mas era possível manter um diálogo de cinco ou dez minutos com bastante coerência.
Não podendo erguer-se sem apoio de enfermeiros ou auxiliares, tentava e conseguia pôr-se de pé pelos seus próprios meios, independentemente dos meus constantes avisos de perigo de queda, mas a força de braços e de mãos era suficiente para, com certos malabarismos, se levantar do cadeirão onde estava sentado para comer à mesa e colocar-se na posição erecta para, com passos curtos, e amparado onde podia, dirigir-se à cama e deitar-se. Eu bem lhe perguntava: ‒ Quer que chame uma auxiliar? ‒ e ele respondia-me: ‒ Não, meu coronel, muito obrigado! ‒, chegando são e salvo ao seu destino, preparado para ouvir um suave ralhete dos enfermeiros ou das auxiliares quando se apercebiam da ocorrência.
Este foi um dos melhores exemplos que tive de persistência no desejo de ficar em condições de regressar ao lar, mesmo que bastante diminuído.
Prosseguindo, na ala esquerda da enfermaria, vinha o caso que deixo para relatar em texto autónomo. Trata-se do cabo da GNR Ricardo Esteves e, aqui, o nome é o verdadeiro.
Este coronel, que escreve as crónicas que fazem o favor de ler, nunca havia passado pelas experiências relatadas e, por isso, esteve, até ao momento, muito distante das realidades do sofrimento humano e da dádiva que é servir como auxiliar ou enfermeira num hospital. Quase todas dizem estar nos seus cargos por vocação, mas nem todos têm a real dimensão do seu trabalho, cuja paga financeira será sempre inferior àquilo que oferecem a quem já tem dificuldade em ser autónomo. Nada paga o afago na cabeça destes velhos militares feito por uma mão feminina e acompanhado de expressões como «meu querido» ou «meu amor» ditas no tom em que as mães dizem aos filhos!