Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

24.06.24

A QUARTA HOSPITALIZAÇÃO

01 ‒ A entrada na enfermaria


Luís Alves de Fraga

 

Foi num domingo de manhã que me senti muito pior dos pulmões, com muita tosse, febre alta e falta de ar (qualquer movimento cansava-me brutalmente). Sei que tenho, há três anos, aquilo que se chama Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC) por causa de um grande enfisema e, também, pelo aparecimento de fibrose pulmonar. Enfim, o resultado de trinta e um anos a fumar e, na fase final, dois maços de tabaco por dia. Mas, o curioso, é que foram precisos passar trinta anos sobre a decisão de largar os cigarros para me surgir a “factura” que tenho de pagar até ao último cêntimo.

Por ser domingo, fomos ‒ eu e a minha mulher ‒ direitos ao Hospital da Cruz Vermelha, às urgências. Já não saí, fizeram-me uma radiografia e tinha uma pneumonia bilateral. Subiram o nível de oxigénio para quinze litros por minuto e por lá fiquei uma noite. O internamento ia ser prolongado e não tenho dinheiro, mesmo com o apoio do sistema de saúde militar, para suportar contas tão elevadas. Pedi a transferência para o Hospital das Forças Armadas (HFAR) onde tudo é muito mais barato. De ambulância privada, lá fui para o Paço do Lumiar, seguido do meu carro guiado pela minha mulher.

À chegada, a grande surpresa: não havia quartos privados, compatíveis com a minha condição de coronel, mesmo reformado… Tinha de ir para uma enfermaria de seis camas! Lá fui, acompanhado da minha mulher, em grande estado de revolta. Era inadmissível! Nos dois anteriores internamentos ficara num quarto com casa de banho privativa, televisão, cadeirão e mesa para comer ou escrever. E isto foi há três e dois anos, para não falar da minha primeira hospitalização, quando era cadete da Academia Militar, no Hospital Militar de Doenças Infectocontagiosas (HMDIC), no largo da Boa Hora, no ano de 1963, que me recusei a ir para uma enfermaria onde estavam internados dois soldados, obrigando o médico a desfazer-se do gabinete para o transformar em quarto para mim, porque o internamento ia ser de trinta dias como na realidade foi.

 

Na maca, de mão dada com a minha mulher, encaminharam-me para enfermaria, eram quase sete horas da noite. Ao entrar, deparei com um quadro que me pareceu próprio de uma cena teatral hiper-realista: os gritos desencontrados entre auxiliares, enfermeiros e doentes passavam por uma que dizia: ‒ Já é a terceira vez que te mudo a fralda; vais passar a noite todo mijado ‒ a outro que proferia frases sem nexo e outro que gemia alto: ‒ Tirem-me daqui, eu quero morrer!

Olhei para o enfermeiro e perguntei-lhe o que era aquilo:

‒ O senhor coronel vai ficar aqui muito bem… Olhe, neste lugar já esteve internado, por três vezes o Otelo Saraiva de Carvalho e aqui morreu (não tenho a certeza, mas pareceu-me ouvir) o general Loureiro dos Santos, aquele que ia muitas vezes à televisão!

No meio da tosse e da falta de ar só consegui articular:

‒ Amanhã, logo de manhã quero aqui o chefe do serviço de medicina interna, mais nada! À minha mulher disse-lhe baixinho, para se preparar para, no dia seguinte, mandar vir, de novo, a ambulância e levar-me para o Hospital da Cruz Vermelha e a conta que se lixasse… Depois haveria de expor a situação e ficar a dever, se necessário fosse. Ela despediu-se com um olhar triste, dorido e fiquei na cama, tentado acalmar-me.

Não me envergonho nada de confessar que falei com Deus e pedi-lhe um sinal que me levasse a ser capaz de, no dia seguinte, tomar a decisão mais acertada.

 

Apagaram-se as luzes e o barulho acalmou, ouvindo-se somente o diálogo entre os dois doentes já em estado de senilidade. Dizia um: ‒ Caga-me na mão ‒ respondia o outro: ‒ Sacanas, roubaram a droga. E a coisa parecia ir-se arrastar pela noite fora.

Agora, já tranquilo, recordei-me dos meus tempos de chefe de camarata no Instituto dos Pupilos do Exército e da Academia Militar e, com voz de comando, depois de retirar a máscara de oxigénio da cara, gritei: ‒ Vamos a calar! Ninguém fala mais aqui! ‒ e, retornando ao oxigénio, pedi de novo: ‒ Meu Deus, dá-me um sinal ‒ e caí no mais profundo sono até à manhã seguinte. A noite foi passada como se estivesse no melhor quarto do hospital. Afinal, o meu pedido foi escutado (dirão aqueles que não acreditam em Deus: mero acaso). Para mim, não foi um acaso. Foi, realmente, um sinal, que me levou à decisão de ficar na enfermaria, ali naquele canto de onde tinha uma visão quase geral de todo o espaço.

Vão seguir-se mais crónicas e verão como, com fé e em simultâneo, friamente, tomei a decisão de ficar.