A piromania política nacional
Para mim, tão pirómano é o que deita fogo como aquele que gosta de ver arder o fogo lançado por outro. Ora, neste momento, Portugal está, politicamente a arder. E a arder de fogo posto. Obrigam-nos a ser pirómanos, através dos órgãos de comunicação social. Mas é só agora ou terá sido sempre assim? Eis o ângulo pelo qual vou abordar a questão.
No século XIX, depois das imensas confusões políticas que se viveram entre 1820 e 1850, iniciou-se um ciclo de governação convencionalmente designado por “rotativismo” em que dois partidos alternavam no parlamento e no governo. Diga-se, em abono da verdade que, deposto um deles, o outro era convidado a formar gabinete e a preparar as eleições que, “naturalmente”, ganhava e, tudo isto foi-se assim arrastando até à primeira década do século XX. A ditadura (governação sem existência de parlamento) desejada por D. Carlos teve lugar com a figura sinistra do dissidente de um dos partidos alternantes e foi a verdadeira responsável pelo regicídio: a República estava na primeira linha para tomar de assalto a Monarquia. E tomou, em 5 de Outubro de 1910.
Contudo, e como sempre, uns republicanos viam-na de maneira branda, outros de balancé entre o muito e o pouco e, por fim, outros ainda, queriam-na radical. Estava aberta a luta democrática para a instabilidade ou, como um historiador/comentador contemporâneo lhe chamou, para o surgimento da “guerra civil intermitente” (erro grosseiro, porque descontextualizado do que se passava na Europa e, em especial, no continente americano). Embora republicano, Portugal continuava a arder politicamente.
Guerra civil intermitente ou não, a verdade é que na, 1.ª República, os governos se sucederam uns atrás dos outros com elevada celeridade. Foi com o início da 1.ª Guerra Mundial que surgiram os golpes de estado liderados pelas Forças Armadas de enão. Todavia, o mais curioso é que o primeiro golpe de estado foi de natureza palaciana, conduzido pelo Presidente da República, Manuel de Arriaga, quando, à semelhança de D. Carlos, chamou para governar em ditadura o general Pimenta de Castro. Daí para a frente por detrás de cada queda de gabinete governativo estava, como respaldo, ou uma figura militar ou mesmo as forças militares até se chegar ao 28 de Maio de 1926 em que o Exército impôs uma ditadura, cujo final ocorreu, por vontade dos capitães, em 25 de Abril de 1974. Foram quarenta e oito anos em que Portugal ardeu em lume brando.
Durante a ditadura fascista autodesignada por Estado Novo e agora, por alguns, eufemisticamente chamada “2.ª República”, foram várias as tentavas militares, sempre falhadas, de derrubar o regime, até que o prolongamento da guerra colonial criou as condições para que tal acontecesse. Mais uma vez, as Forças Armadas!
E o que fizeram os políticos da actual República? Foram, lenta, mas seguramente, com artifícios e manhas, desarmando as Forças Armadas que, mesmo ao cabo de cinquenta anos de liberdade e democracia, seriam, agora ou alguma vez, incapazes de derrubar o que tanto lhes custou a construir. Mas substituíram-nas, através de mecanismos políticos, mais evidentes ou não, para dar continuidade à tradição golpista. Poderá lá ser!
É! Constitucionalmente o Presidente da República, que não governa, pode dissolver a Assembleia da República, máxima expressão da vontade popular. Pode fazê-lo, e já o fizeram, se a estabilidade das instituições democráticas estiver em risco. Mas, mais subtilmente, o terceiro poder do Estado, o judicial, através dos magistrados da Procuradoria Geral da República (que, espante-se, sendo o terceiro poder independente do Estado democrático, têm sindicato reivindicativo) também pode fazê-lo ao lançar sobre o poder executivo a desconfiança que desbloqueia a vontade do Presidente da República. E tudo será legal, desde que na praça pública fique a dúvida sobre o desgoverno do Governo pois, até se provar que tudo não passou de um mero golpe, decorrerão vários anos até, em julgado, se concluir que, afinal, a montanha pariu um rato.
Estes golpes podem ser encomendados com muito tempo de antecedência e podem ser “guardados na gaveta” até que dê jeito ao mandante, seja ele quem for, torná-lo oportunamente conhecido.
Repare-se que a presente crise estava “na gaveta” desde 2016, veja-se bem! Quando vem a público traz erros, é incompleta, prende um inocente durante uma semana, os chamados arguidos são deixados em liberdade, tão baixa é a matéria criminal que sobre eles recai! Qual a razão de a Polícia Judiciária ter sido afastada da investigação? Receio de fuga de informação ou receio de falta de surpresa com o respectivo contra-ataque?
Quando qualquer investigação pretende ser isenta, o investigador deve começar sempre pela clássica pergunta: a quem beneficia a infracção? Quem ganha com os acontecimentos? E quem perde? E porquê?
Graças a Deus não tenho nem idade nem habilitações jurídicas para me ser atribuída a investigação deste caso que, com velocidade e oportunidade, ultrapassou um outro no valor de quatro milhões de euros, supostamente envolvendo uma distinta instituição do Estado. A comunicação social é rápida em tornar obsoletas as coisas passadas há pouco tempo, veja-se a guerra entre a Rússia e a Ucrânia.
E vivam os pirómanos!