A nova década
Ontem, ao serão, graças ao aviso lançado por um Amigo, passei, já tardiamente, por um canal televisivo onde se discutiam os tempos de agora. Apercebi-me que se falava do Irão, do assassinato do general, de petróleo, de clima e poluição e, também, das esperanças para o futuro. Do que vi e ouvi, escolhi para tema de reflexão de hoje a mudança de paradigma político que se avizinha.
Há cem anos começavam os, depois, designados “loucos anos 20”. Foi um tempo, na Europa e nos EUA, de desbunda. A guerra, acabada em 1918, provara quão efémera era a vida humana, desbaratada nas trincheiras por vontade de políticos que até tinham dificuldade em justificar a razão da carnificina, gerando um tempo de desejo de viver sem responsabilidades, ainda que correndo riscos, um tempo de loucura, desde o uso e abuso de cocaína até à dança desengonçada de ritmos novos, passando por uma profunda alteração da moda e dos costumes. Na Europa e nos EUA procurava-se um novo caminho, um novo rumo para a vida.
Como a História não se repete, de certeza não vamos reviver o que se passou há cem anos, mas, contudo, estamos num impasse político, social e, acima de tudo, económico.
Os Estados europeus perderam quase toda a importância política e financeira de há cem anos. Hoje o centro da decisão das ocorrências no mundo deixou de estar ligado ao eixo Londres-Paris-Berlim para se estabelecer na linha que une Washington-Moscovo-Pequim. Já nem sequer é bipolar a decisão política no globo, como conseguiu ser após a 2.ª Guerra Mundial; com a queda do bloco de Leste, multiplicaram-se os centros de instabilidade, ganhando autonomias impensáveis.
A separação, pelo menos aparente ou disfarçada, entre a política e a finança tornou-se, na viragem do século, promíscua, evidente e avassaladora. As fortunas aumentaram a níveis impensados, fugindo aos sistemas fiscais dos Estados, fixando-se em paraísos aduaneiros onde se lava o dinheiro cujo valor se multiplica exponencialmente. Os resquícios de ética nos comportamentos sociais, comerciais e políticos desapareceram. A democracia herdada do século XIX e transformada com as mudanças do século XX está em plena crise; vêem-se proliferar, um pouco por todo o lado, os populismos, que não matam o sistema democrático, mas alienam-no, tal como se notam afloramentos de fascismos diferenciados daqueles que existiram no passado, mas, todavia, plenos de xenofobia, de racismo, de violência.
A segunda década do século XXI ameaça fazer ruir os procedimentos sociais, políticos e económicos tradicionais sem nos mostrar alternativas ideológicas e doutrinárias como aconteceu no final do século XIX. Sabemos que se esboça uma mudança, mas não sabemos qual é nem para onde vamos. A única ideologia que parece comandar a sociedade é a chamada globalização. Mas ela surge-nos mais como uma ameaça de destruição do que como uma redenção política, social e económica. Parece que se vive para o consumo sem ter oportunidade de poupar, enquanto outra parte da população global cai na mais sinistra miséria. O discurso político está centrado nas alterações climáticas ao mesmo tempo que subsiste uma prática contrária à sustentabilidade da vida na Terra.
Há, cada vez mais, um egoísmo colectivo, não nacionalista, porque, parece, se quer esbater fronteiras com apropriação de tudo o que é dos outros como, se quem pode viajar, desejasse “comer” o mundo, consumindo-o através da afirmação de o ter percorrido de lés-a-lés. Em simultâneo, há quem nunca tenha saído do seu pedaço de chão e morra sem consciência do que se passa fora da distância do seu olhar.
Os fossos económicos e culturais aprofundam-se até atingirem proporções descomunais. Há gente, no mundo, que nunca passará do simples conhecimento de si mesma, sem outros horizontes de destinos que não sejam a sobrevivência e a morte. Por outro lado, “desperdiça-se” educação e instrução com gente que não quer aprender, porque tem acesso a quase tudo sem esforço.
De facto, objectivamente, não há progresso! Há desigualdades onde uns beneficiam de descobertas e outros ajudam, quando muito, a construir os artefactos que estabelecem as diferenças.
A crise dos anos vinte deste século vai desaguar não sabemos em que oceano, mas em algum lado a humanidade encontrará o seu fim.