Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

24.07.19

A guerra em África: o recrutamento colonial


Luís Alves de Fraga

 

Com o passar dos anos, aí por volta de 1969 ou 1970, o recrutamento do contingente militar metropolitano começou a tornar-se insuficiente para as necessidades nos três teatros de operações. Este facto obrigou a uma tomada de posição, que havia sido evitada antes: recrutar os negros autóctones de cada uma das colónias. É sobre isto que me debruçarei agora, mas, também, sobre o recrutamento dos brancos nascidos nos territórios ultramarinos, porque há certos pormenores a merecerem ser realçados. Acrescentarei mais uma espécie específica de um tipo de recrutamento: os voluntários europeus com conhecimento do mato. Deixarei de fora, para tratamento autónomo, o recrutamento e treino das tropas especiais africanas.

 

Na busca de uma coerência antes não exaltada, surgiu o recrutamento, para o contingente geral do Exército, dos mancebos negros de cada colónia. Esta medida, para além de necessária, pretendia provar que, de facto, aqueles territórios eram tão portugueses como qualquer dos distritos do Portugal peninsular. Assim, também os negros deveriam ser empenhados na luta contra os movimentos independentistas, deixando de lado problemas e responsabilidades morais que tal medida levantava.

Com efeito, ao recrutar jovens locais para integrarem as forças militares regulares portuguesas, estava-se, sem margem para qualquer dúvida, a empurrá-los para serem parte activa numa guerra civil que, até ali, era mais uma guerra de secessão, que opunha opressores ou dominadores a oprimidos ou dominados.

Terá passado pela cabeça dos políticos portugueses, de então, este “empurrar” dos africanos para uma “fogueira” onde, mais tarde, poderiam arder os ódios da vingança em nome da traição? É que foi isso que aconteceu! Aconteceu depois das independências e, mesmo antes, mal esta foi perspectivada pelos negros. Houve, pelo menos em Moçambique, unidades militares constituídas maioritariamente por soldados indígenas que, após o dia 25 de Abril de 1974, ou desertaram ou, em massa, se negaram a continuar ao serviço. Receavam, e bem, as retaliações advenientes.

 

Não deixa de ser uma mácula grande e grave no processo de descolonização o total desprezo a que foram votados todos os antigos soldados africanos combatentes no Exército regular português. O Movimento das Forças Armadas (MFA) e os políticos de então preocuparam-se com o processo de democratização nacional e, fazendo jus à sua raiz fascista e colonialista, não souberam salvaguardar a vida e a dignidade daqueles que, a mando do antigo regime ditatorial, serviram para combater os seus irmãos de sangue e de cultura. Claro que, para mim, é fácil hoje, aqui e agora, culpar os que fizemos e quisemos a democracia e as independências coloniais; seria ainda mais fácil limitar-me a culpar o fascismo, que determinou a guerra e a prolongou, mas tal atitude, à luz da minha consciência cívica e histórica, correspondia a tentar tapar o sol com uma peneira bastante esfarrapada.

 

O mesmo já não digo em relação aos mancebos brancos de origem europeia, nascidos nas colónias filhos de pais nelas radicados. A esses competia-lhes, por razão de coerência, serem os primeiros a marchar na luta contra a guerrilha, porque estariam, supostamente, a defender o seu “status quo”. Foram muitos os que se deixaram incorporar nas fileiras do Exército maioritariamente constituído por jovens metropolitanos. Contudo, foram bastantes os que, alegando razões diversas, se escaparam do serviço militar e de participar na luta, no mato, contra aqueles que também estavam a combater pela independência de todos.

Este é um aspecto sensível que nunca foi explicado ‒ nem poderia sê-lo ‒ na altura, aos filhos dos colonos e, até, aos próprios colonos. Disponhamos de um pouco de paciência para compreender esta questão.

 

Excluindo, por quase ausência de colonos europeus, a Guiné ‒ colónia que merece ser analisada em particular ‒ fixemos a atenção, primeiro, em Angola e, depois, em Moçambique.

 

Em Angola, logo de início, surgem dois movimentos de libertação: a UPA (herdeira da UPNA) e o MPLA. O primeiro recebia apoios financeiros idos dos EUA e o segundo da URSS. A UPA (depois FNLA) não tinha uma ideologia política por trás de si para além do desejo da independência e, se possível, com domínio político e social dos povos do Norte de Angola; o MPLA, por via do apoio soviético, fundava a ideologia política no pensamento marxista. Esta diferença ideológica é primordial, pois o marxismo, em África, tendia a neutralizar diferenças étnicas e raciais, polarizando a orientação política naquele que era o inimigo comum de todos os africanos e europeus: a exploração colonialista e capitalista. E, colonialista não eram o colono, nem o funcionário, nem o comerciante, nem o pequeno fazendeiro; colonialistas eram os grandes interesses financeiros que tanto exploravam ‒ embora de maneiras desiguais ‒ europeus e africanos.

Esta diferença entre ideologias, em Angola, levou a que os dois movimentos e, posteriormente, o terceiro ‒ a UNITA ‒, tendo como inimigo comum os defensores do colonial-fascismo, lutassem entre si para, derrotando os restantes, imporem à sociedade, pouco ou nada politizada, a ideologia adoptada.

Numa análise primária e imediata, o MPLA iria permitir a convivência pacífica, tolerante e tolerada dos europeus que, manifestamente, se lhe não opusessem e fossem, realmente, também, vítimas do sistema colonial.

A existência dos três movimentos dificultou tudo em Angola, até a luta militar contra todos.

 

Em Moçambique a situação era claramente mais simples, porque só existia um movimento a lutar pela independência e era de matriz marxista, aplicando-se-lhe tudo o que acabei de referir em relação ao MPLA.

 

Aqui chegados, percebe-se que o pânico dos colonos em relação à guerra se deveria ter virado contra os movimentos não marxistas, se para tal tivessem a devida informação. Mas Lisboa sabia tudo isto com precisão, todavia calava-se, por razões ideológicas, como, também, é compreensível.

 

Os “combatentes” voluntários, europeus, foram figuras ‒ umas mais destacadas do que outras ‒ conhecedoras dos trilhos do mato, dos povos do interior e das formas de se movimentarem. Alguns eram caçadores profissionais, sendo que o mais conhecido de todos foi “combatente” no Norte de Moçambique, na região do lago Niassa, e, mais tarde, oficial do Exército sul-africano, em Angola. Chamava-se Francisco Daniel Roxo.

Julgo que se tratava de aventureiros, vagamente identificados com três princípios: um “patriotismo” pouco esclarecido, um fascismo de propaganda e um racismo selectivo.

 

Como se viu, o recurso ao recrutamento local de mancebos africanos ou europeus não foi, nem seria nunca, solução para uma guerra que antes de ter começado já estava perdida. No entanto, esse recrutamento deixou bem evidente algumas máculas tanto do fascismo como da democracia e pôs a nu aventureirismos e oportunismos egoístas.

As guerras têm destas coisas, tão mais chocantes quanto mais injustas.

1 comentário

Comentar post