A guerra em África: fugitivos
Tenho procurado trazer aqui reflexões com matriz histórica e sociológica sobre a guerra em África, abordando aspectos quase esquecidos ou propositadamente pouco falados. Faço-o, porque o tempo passou e, esgotando-se a ampulheta da vida, não haverá quem, com algum conhecimento de causa, independência e cautela, traga à colação questões capazes de constituir motivo para estudos aprofundados, mais tarde, quando o momento for o dos historiadores.
Já expus anteriormente o meu conceito de desertores e de fugitivos ‒ aqueles que emigraram ou que, por meios ínvios, escaparam de cumprir serviço militar. E é desses que me vou ocupar, naturalmente, na generalidade.
Antes, porém, para acabar com as dúvidas, quero clarificar que os conceitos por mim utilizados são meus e nada têm a ver com as definições usadas correntemente para aqueles que fogem, ou fugiram, ao cumprimento do serviço militar.
Numa primeira fase ‒ poderia balizá-la entre Março de 1961 e, no máximo, o final do ano de 1963 ‒ a juventude esclarecida portuguesa ‒ aqui conto com a mais alfabetizada e urbana ‒ terá aderido à ideia de defesa dos interesses de Portugal e de uma pátria pluri-racial e multi-continental, conceito herdado da Monarquia e passado ao Estado Novo pela 1.ª República, mas, como já disse, ultrapassado pelos acontecimentos depois das duas guerras mundiais.
Esta adesão foi incentivada pela propaganda fascista feita, em especial, na escola e nos estudos subsequentes, através dos livros e da famigerada Mocidade Portuguesa. Fora deste círculo quase fechado ficaram todos os jovens pouco alfabetizados e vítimas da pobreza rural ou urbana. Esses foram, nos primeiros anos de guerra, para onde os mandaram como carneiros dominados por um feroz cão de guarda.
Numa segunda fase ‒ posterior a 1964 e que se prolonga até dez anos mais tarde ‒ começaram a surgir os fugitivos. Fugitivos que, por uma questão de facilidade de exposição, divido em dois grandes grupos: os filhos-família e os desgraçados.
Do primeiro grupo conheci muitos, em especial, alguns que, nunca tendo visto uma chave de parafusos, eram “operários” nos estabelecimentos fabris militares, ficando somente obrigados a fazer a recruta ‒ aqueles que por razões físicas era impossível considerar inaptos ‒ regressando, depois aos seus trabalhos nas repartições dos diferentes ministérios e secretarias de Estado castrenses.
Claro que, desta vasta massa de jovens, nem todos eram filhos de gente importante, todavia, tinham conhecimentos familiares que actuavam junto de autoridades militares ou políticas capazes de fazer fugir os afortunados ao cumprimento da obrigação.
Curiosamente, muitos deles ‒ conheci bastantes ‒ eram acérrimos defensores da “situação”, salazaristas ou caetanistas de primeira água, gente apta a jurar que Portugal era “uno” de Monção, no Minho, a Dili, na distante ilha de Timor. Contudo, para defender essa “unidade”, deviam marchar outros que não eles!
Digno de nota, para mim, é a revolta de muitos contra os desertores e a total passividade, o mais absoluto silêncio, sobre estes “meninos”, que escaparam ao serviço militar ‒ esses sim ‒, dando provas de uma imensa cobardia! Será coisa dos “brandos costumes” nacionais?
Do segundo grupo de fugitivos ‒ o dos desgraçados ‒ fazem parte todos aqueles que, sem recursos para mais nada, abandonaram a sua terra para trabalharem na estranja ‒ França, Alemanha, Luxemburgo ‒ fugindo à miséria e à guerra. Era gente que arriscava tudo o que tinha, incluindo o regresso ao seio da família, porque a prisão esperava-os logo à passagem da fronteira.
Claro que entre estes emigrantes forçados houve alguns, não muitos, que optaram por trabalhar e estudar ou só estudar lá nos países de abrigo, invocando a condição de refugiados políticos. Também para com estes ‒ e eu acho bem ‒ há uma grande “compreensão” para a fuga à guerra.
Nos tempos que correm, tempos de ausência de serviço militar obrigatório, é difícil compreender o que foi a guerra não só nos seus aspectos directos ‒ sobre os quais há tanta gente a falar o que sabe e o que não sabe ‒ como sobre os aspectos indirectos.
A nossa juventude, aquela que se interessa por conhecer o passado na vertente mais próxima da verdade, pode ter aqui várias formas de se debruçar sobre o grande empenhamento na guerra em África vivida, de maneiras diferentes, pelos pais ou avós.
Vou voltar a este tema, tratando-o segundo prismas distintos.