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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

02.09.19

A guerra em África: Engenheiro Jorge Jardim


Luís Alves de Fraga

 

É fácil encontrar biografias do engenheiro Jorge Jardim, figura bastamente conhecida de quem passou por Moçambique nos anos da guerra. Mas, da biografia à realidade descrita por alguém que viveu o ambiente da cidade da Beira quando ele ali manobrava a sua estratégia ultramarina, vai uma grande distância.

Tentarei, com objectividade, deixar as minhas impressões distribuídas por dois momentos diferentes: entre 1966-1969 e 1973-1975.

 

Quando cheguei a Moçambique, fiquei vários meses na, então, cidade de Lourenço Marques onde, nos círculos militares da Força Aérea, não se falava de Jorge Jardim. Os jornais não lhe faziam referência e entre a população civil ‒ com quem rapidamente travei relações de convívio ‒ era nome que se não pronunciava.

Em Setembro de 1967 fui colocado na Beira e caí nos “domínios” do engenheiro, como hoje lhes poderei chamar. Não havia cão nem gato que não falasse dessa personagem, chegando a parecer que o centro de decisão da política e da vida de Moçambique era ali.

 

No ar sentiam-se ainda os restos do “conflito” que havia passado por Jorge Jardim ou, talvez melhor dito, pela família Jardim: o desentendimento entre eles e D. Sebastião Soares Resende, falecido bispo da Beira. O fundamento justificava-se pelas posições pouco “nacionalistas” de Soares Resende, mais preocupado com a exploração colonialista que se fazia dos negros da sua diocese.

Os dois jornais existentes na cidade “Diário de Moçambique” e o “Notícias da Beira” representavam, à data, as duas tendências, respectivamente: a do prelado e a de Jorge Jardim. Também existiam duas estações emissoras de rádio: a da diocese (Rádio Pax) e a “obediente” ao engenheiro (Emissora do Aeroclube da Beira).

 

Jorge Jardim era um dos poucos “homens de confiança” de Salazar, em assuntos coloniais, e, devido ao seu temperamento aventureiro e irrequieto, já depois de radicado em Moçambique, como administrador da Lusalite, após a eclosão da guerra, através de um golpe de audácia, conseguiu ser nomeado vice-cônsul do Malawi, obtendo, assim, passaporte diplomático daquele Estado africano, facto que lhe possibilitava deslocar-se livremente, por toda a África.

Foi neste quadro de “livre circulação” que construiu uma teia de relações tão úteis para lançar acções de espionagem e sublevação no continente africano como para estabelecer contactos informais com todo o tipo de líderes legais ou insurgentes.

 

Quando voltei à Beira, em 1973, alguém suficientemente atento percebia algumas das manobras internas em que Jorge Jardim era elemento fulcral.

Nos primeiros anos da década de setenta a família Jardim ‒ especialmente através das numerosas filhas já crescidas ‒ estava intimamente ligada à Base Aérea n.º 10, com sede na cidade da Beira, aos recém-criados GE e aos GEP, cujo aquartelamento ficava na área da residência daquele agente do regime colonial.

Por essa época, nos meios militares, pelo menos aeronáuticos, percebia-se que Jorge Jardim poderia estar a desenhar uma solução autónoma do conflito em Moçambique. O jornal controlado pelo engenheiro deixava transparecer, nas entrelinhas, um sentimento de desagrado em relação ao clero desvinculado da posição oficial portuguesa e larga simpatia pelo presidente Banda, do Malawi, e do regime rodesiano de Ian Smith.

 

Depois de Abril de 1974 ficou a saber-se que aquele agente político português, pouco tempo antes, havia conseguido estabelecer um pré entendimento com assessores de Kenneth Kaunda, da Zâmbia, e Julius Nierere, da Tanzânia, com a intermediação de Banda, para se conseguir a neutralização militar da FRELIMO, levando-a a aceitar negociar um avanço para a autodeterminação com aspecto democrático, envolvendo outros partidos, incluindo um de representação de europeus. Jorge Jardim seria o elemento pivot para a articulação de um cessar fogo. Constou, na altura, que Samora Machel teria ponderado analisar as propostas, porque, do ponto de vista militar, não estava claramente definida a possível vitória da guerrilha sobre as forças portuguesas.

Soube-se, posteriormente, que, Marcello Caetano, colocado perante o projecto de Jorge Jardim, o recusou liminarmente, pois iria, no plano da estratégia geral portuguesa, abrir uma brecha conducente a uma reviravolta na política colonial prosseguida desde 1961.

 

Acontecimentos ocorridos na cidade da Beira, em Janeiro de 1974 (dos quais me ocuparei mais tarde), levaram à publicação de um editorial no “Notícias da Beira”, escrito provavelmente pelo engenheiro, onde, sem a evidência anteriormente exposta, se percebia a manobra política de Jorge Jardim.

 

Impedido de regressar a Moçambique logo nos dias a seguir à revolução libertadora da ditadura, tanto ele como a família, continuaram a merecer “protecção” de alguns sectores militares.

Com efeito, na sequência do golpe de 25 de Abril de 1974, os jovens capitães ‒ e outros não capitães e não tão jovens ‒ caíram em incoerências políticas inimagináveis à luz do que hoje se sabe. O caso mais flagrante foi o da composição da Junta de Salvação Nacional, começando logo pelo seu presidente, general António Spínola, oficial, sem sombra de dúvida, altamente comprometido com o regime fascista. Outros, ou se desconfiou logo no momento ou vieram a manifestar-se posteriormente.

Ora, na primeira deslocação do general Costa Gomes a Moçambique, poucas semanas após a queda da ditadura, acompanhou-o o general piloto-aviador Diogo Neto, antigo comandante da 3.ª Região Aérea, e, após o desembarque na Beira, este oficial determinou ao comandante do BCP-31, que mandasse montar uma guarda com número suficiente de militares no piso do hotel onde a família Jardim se alojara por ter abandonado a residência no Dondo. Havia que lhes garantir a segurança. E foi isso que se fez. Ou seja, o MFA ‒ ou parte dele ‒ estava “armadilhado” pelo lado de dentro, como, em Moçambique, em Setembro seguinte e, em Portugal, em Março de 1975, se confirmou.

A protecção sobre Jorge Jardim e os seus planos estratégicos manteve-se até à irreversibilidade do processo de independência das colónias e à irredutibilidade da FRELIMO em admitir conversações com partidos políticos criados à pressa para gerar a ilusão de uma democracia negra e branca.

 

Um homem de figura quase franzina, dominado por uma audácia e uma coragem física fora do normal, foi uma das personagens mais controversas, secretas e estranhas do tempo da guerra colonial. Manobrou e agiu em vários “tabuleiros” do xadrez africano e, até, indiano, com inteligência, mas com um objectivo já não compatível com o tempo histórico em que viveu. Morreu em África, longe da Beira, de maneira estranha, tão estranha como a forma como viveu a política.