A guerra em África e Salazar
De acordo com a promessa feita, cá estou, de novo a voltar ao assunto que dá título a esta reflexão.
Tem-se dito que o fascismo português se diferenciou de outros da Europa, nomeadamente do italiano e do alemão, por não praticar o expansionismo territorial através de guerras de conquista. Contudo, há aqui um equívoco resultante de um pormenor que não é levado em conta, por não ser devidamente interpretado: o colonialismo. Vejamos.
Ao consultarmos as diferentes Constituições Políticas de Portugal (1822 ‒ que claramente enuncia os territórios extra europeus onde se exerce a soberania e estão muito longe de serem aqueles que hoje identificamos com as colónias de há cem anos ‒, 1826 e 1838) verificamos que estabelecem como território nacional aqueles que estão, para além da Europa, espalhados pelo mundo (a de 1933 indica, caso a caso, quais são essas possessões, já com a terminologia que lhes veio da ocupação efectiva definida pela Conferência de Berlim, de 1884/1885). Ou seja, como herança da Monarquia absoluta, os Portugueses, dentro do espírito liberal da Revolução Francesa, afirmaram serem pertença da nação algumas das terras descobertas e ocupadas a partir do século XV.
Não havia, na tradição nacional, o conceito de colónia tal como é hoje entendido; havia a noção de posse por direito de ocupação ou conquista. Direito esse que subsistiu, igual e inalterável, desde a mais remota antiguidade até à referida Conferência de Berlim onde, sem dúvida e inequivocamente, se definiu um novo conceito de posse e domínio: o colonial, ainda que, anteriormente, Ingleses, Franceses Holandeses e Espanhóis tivessem já submetido territórios no continente americano e na Ásia como colónias embora eivados do conceito clássico ‒ grego e cartaginês ‒ de ocupação de terras para instalação de agentes comerciais e agricultores seus.
Assim, por conseguinte, os territórios extra europeus em posse de Portugal até 1885 não constituíam uma ofensa aos direitos dos povos e das gentes. Não constituíam, porque o direito pelo qual se regia a noção de ocupação e conquista não tinha sofrido qualquer alteração. Ou seja, Portugal tornou-se um Estado colonialista depois de 1885 por imposição das potências que não por descoberta ou achamento, mas por conquista pura, praticavam um novo tipo de colonialismo: o colonialismo explorador e subordinante dos povos colonizados.
Como se percebe, a mutação do conceito de colónia é muito subtil e, em Portugal, induziu ‒ se é que ainda não induz ‒ em erro muita gente. A Salazar, pela certa, não lhe terá passado despercebida, mas, exactamente por causa da subtileza que procurei evidenciar, ele soube aproveitar-se para, através de uma propaganda bem montada, confundir os espíritos, baralhando-nos sobre um “direito histórico”, próprio da tradição herdada, e uma nova forma de domínio dos povos.
Salazar e a corte de intelectuais que o serviam mais ao regime fascista, com igual subtileza, quiseram confrontar os novos arautos da descolonização ‒ os políticos dos EUA ‒ com a incoerência do seu novo “direito internacional”.
Qual era essa incoerência? Fácil!
A de defenderem o direito à independência das colónias, porque “nasceram” de colónias, esquecendo que eles ou os seus antepassados haviam sido colonizadores e chacinadores dos povos autóctones da parte norte do continente americano. Esse era o “calcanhar de Aquiles” dos políticos dos EUA.
Salazar, habilmente, durante o tempo da guerra em África, fez disparar os seus mais astutos diplomatas junto da ONU para, com cautela, colocar em confronto as várias facetas da contradição: chacinadores a atacarem quem, na função colonial, por ser civilizadora, não tinha como princípio o extermínio dos indígenas e quem tinha colónias, porque as entendia segundo um princípio histórico e tradicional e não na perspectiva “moderna” daqueles que colonizaram para matar e roubar.
A argumentação de Salazar parecia perfeita, mas falhava, porque a tradição portuguesa do século XIX e anteriores foi “atraiçoada” pela Revolução Industrial e pelos interesses do capital ao serviço da nova forma de produzir e comerciar; a cultura do algodão, do café, do cacau, do sisal, do coconote, do chá, do milho e a exploração mineira determinavam comportamentos em nada semelhantes à tradição nacional.
Este foi o “expansionismo” do fascismo português: conservar territórios vindos de outros tempos históricos.
Salazar quis prolongar a guerra para impor a vitória da desmontagem da contradição e da tradição. Foi um erro estratégico ditado por uma mente crente ou em milagres ou cristalizada em valores ultrapassados. Esse erro custou a vida a muitos jovens militares e os sonhos a muitos incautos “colonos”.
O assunto não se esgotou.