A guerra em África: desertores
Falar dos combatentes esquecendo os desertores e os fugitivos podia ser entendido como um hino de glória aos primeiros. Não quero, nem posso esquecer os desertores ‒ aqueles que em África optaram por abandonar as Forças Armadas ‒ e os fugitivos ‒ aqueles que emigraram ou que, por meios ínvios, escaparam de cumprir serviço militar.
Estabeleço a diferença entre uns e outros, porque, quer-me parecer, as motivações podem ter sido diferentes, embora, analisadas por cima, pareçam iguais.
Comecemos por um esclarecimento muito esquecido nos dias de hoje.
Nos anos da guerra, os jovens em idade de serviço militar empenhados politicamente no PCP eram aconselhados a não fugirem, porque a luta ideológica fazia-se dentro dos quartéis, segundo o parecer dos membros do comité central. Como sempre, não cumpriam esta regra os partidários menos preparados e inseguros das suas opções.
Para percebermos a deserção temos, antes, de compreender a natureza da guerra em África.
Na verdade, o conflito de 1961 a 1974 não foi em nada igual a qualquer outro confronto bélico entre Estados por razões de fronteiras, expansionismo ou superioridades económicas; a guerra tinha uma matriz ideológica, segundo o lado pelo qual se via: impor um jugo de dominação ou libertar-se de um jugo de dominação.
Portugal, o nosso “velhinho” Portugal, em 1143, lutou, liderado pelo tão enaltecido D. Afonso Henriques, para se libertar da dominação de Leão e Castela. Tal como Portugal, muitos outros Estados consagrados e admirados da Europa e do mundo fizeram o mesmo. Só razões ideológicas obtusas e anacrónicas poderiam negar às colónias portuguesas o mesmo direito, que assistiu ao nosso país, de serem independentes. Só alguém profundamente alienado é que pode obstruir a possibilidade de um povo ser livre.
Assim, todos os desertores da guerra de África, mas mesmo todos, tendo-se passado para o lado dos guerrilheiros ou ido ganhar a vida de qualquer outra forma, foram homens que não se deixaram subordinar pela ideologia oficial do fascismo. Um fascismo que aplaudia a “RECONQUISTA” de Portugal aos Mouros, depois destes terem dominado o território durante QUINHENTOS anos!
Por onde andava a coerência desta gente que aplaudia Salazar como se de um deus se tratasse?
À luz da ideologia fascista quem desertava era traidor, como traidores eram todos os que não seguiam caninamente o pensamento oficial.
À luz da História, há muito tempo, os desertores da guerra de África, deixaram de ser traidores, porque, em boa verdade, nunca o foram. Traidores aos direitos humanos e políticos foram todos os que nos mandaram fazer a guerra contra quem queria ser livre. E não interessa discutir o que depois fizeram com essa liberdade!
Será que alguém se atreve a considerar traidores os Capitães de Abril por terem posto fim a um regime ignóbil e a uma guerra injusta?
É que, afinal, todos nós os que fizemos o 25 de Abril de 1974 ou o apoiámos activamente, “desertámos” da guerra! Somos traidores? Qual a diferença entre desertar em 1962, 1968, 1970 ou em 1974?
A natureza da guerra de África era um convite à deserção… dos que tivessem consciência política e dos que já não se identificassem com a injustiça do conflito.
Voltarei para falar dos fugitivos.